domingo, 7 de abril de 2024

60 ANOS DO GOLPE. GERAÇÕES EM LUTA

 


 

                                                             

 

1964. O fatídico e tenebroso ano do golpe militar que dilacerou gerações.

Nos primeiros três anos dessa década de 1960, continuava-se a viver tempos tão propícios à construção do Brasil desenvolvimentista em todos os setores: na educação, na literatura, na saúde, na música, na agricultura, na indústria e no comércio, no esporte, nas relações internacionais.

Eu, nos meus 18 anos, iniciando o 3º ano do curso Clássico, voltado à área de concentração das ciências humanas, arrebatado, em meio a tantas e tantos amigas e amigos, colegas, propondo-nos contribuir, ativamente, na construção da sociedade brasileira que arrostasse os desequilíbrios sociais, que franqueasse, sem limites, o acesso de todas e de todos, nas peculiaridades de cada qual, ao banquete da vida em plenitude.

Hoje, em 2024, valho-me de texto da advogada Izadora Gama Brito, intitulado “Teto, Pão e Renda”, posto no livro “Realmar a economia – a Economia de Francisco e Clara”, assim escrito:

“É preciso disseminar a informação e travar a batalha de ideias, disputando mentes e corações, resgatando a utopia das cidades como lugar do bem viver, do viver comunitário, solidário, onde as cidades sirvam às pessoas e não a coisas e à especulação imobiliária, grande aliada do capital financeiro.

A cidade pela qual lutamos é aquela em que todas e todos possam ser iguais socialmente, humanamente diferentes e livres de opressões, explorações e discriminações. Esse horizonte de cidades é utópico, mas também realista e necessário; é urgente! Nas palavras do Papa Francisco, nossa luta é por “nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. (artigo citado – pg.214).

1965. Ingressando na Universidade de Brasília para cursar a Faculdade de Direito, na esperança juvenil de que se poderia, de algum modo, mantê-la firme nos seus propósitos de pesquisa, docência e aprendizado inseridos em perene diálogo com a Sociedade.

Frustração e tristeza.

O quadro, a tanto causar, bem o traça o Professor Roberto Salmeron no livro que escreveu: “A Universidade interrompida: Brasília 1964-1965”:

“Em outubro de 1965, um ano e meio depois das primeiras expulsões, um outro reitor foi designado pelo presidente da República, também por injunções políticas, os docentes sendo colocados diante de um fato consumado. Recém-chegado, em função que havia cinco semanas apenas e ignorando tudo, realmente tudo sobre a universidade, chamou o Exército e a Polícia Militar para novamente a invadirem. E demitiu, arbitrariamente, mais dezesseis professores, sem acusação e sem possibilidade de defesa, como tinha feito o seu antecessor. O pretexto apresentado a posteriori, foi o de que eram indisciplinados, e indisciplina deveria ser considerada um aspecto da subversão (livro citado – pg. 25/26).

Essa demissão coletiva, caso único na história de universidades no mundo, foi espontânea, não foi programada, nem dirigida do exterior, como alguns ridiculamente pretenderam. Devido à determinação e à união dos docentes houve quem duvidasse da espontaneidade. Por que tal atitude de 223 pessoas? Que fatos levaram tantos, conscientes e responsáveis, a se convencer de que não era mais possível continuar trabalhando nas condições que lhe eram impostas? A situação podia ser resumida numa frase em termos simples: seria possível manter a dignidade de cidadãos e de professores construindo uma universidade cujo corpo docente deveria estar sujeito às arbitrariedades de um reitor e de um ministro da Educação que julgavam normal receber instruções do Serviço Nacional de Informações e de outros serviços policiais? O ministro da Educação dizendo em entrevistas que educação é assunto de segurança nacional? (livro citado – pg. 27/28).

1973 a 2008 atuando no Ministério Público federal e de 1971 até hoje dedicado ao ensino superior, por muitos anos lecionando Direito Processual Penal e, a partir de 2009, Doutrina Social da Igreja.

A oportunidade desafiadora e valiosa de configurar o Ministério Público federal, a partir da redemocratização, não mais como o advogado do Estado-Administração, mas o defensor da cidadania plena na afirmação dos direitos coletivos e pessoais indisponíveis. Servir à Sociedade brasileira no primado da Democracia, que defende as minorias; o meio-ambiente; a cultura; a saúde; o patrimônio histórico; o patrimônio público, e o agente promotor do zelo à paz pública, fundamentalmente na persecução criminal à macrocriminalidade.

O magistério porque o professor é o artífice da esperança. Promove e estimula a reflexão; o debate respeitoso e fundamentado; vive os valores pelos quais vale a pena viver: a fraternidade – o outro como o “meu outro eu” – e o empenho no compromisso cotidiano à afirmação do bem comum.

Retrocessos e avanços.

Retrocessos no ambiente político. A política afunda-se no jogo do compadrio; do “toma lá, dá cá”; do poder pelo poder, travestido em jogadas de “marketing”, alimentadas, inescrupulosamente, pelo uso das “fake news”.

Quão distantes estamos dessas palavras, tão exatas do Papa Francisco, sobre o real significado do ser político:

“Por isso, “a vida política autêntica, que se funda no direito e em um diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração carregam em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais”.

197. Vista dessa maneira, a política é mais nobre do que a aparência, o “marketing”, as diferentes formas de disfarce da mídia. Tudo isso semeia apenas divisão, inimizade e um ceticismo desolador incapaz de apelar para um projeto comum. Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser: “Para quê? Para onde estou realmente indo? ”. Passados alguns anos, ao refletir sobre o próprio passado, a pergunta não será: “Quantos me aprovaram, quantos votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim? ”. As perguntas, talvez dolorosas, serão: “Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o meu povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais construí? Que forças positivas desencadeei? Que paz social semeei? O que produzi no lugar que me foi confiado? (Carta Encíclica Fratelli Tutti nº 196/197 – pg. 103/104 – edições CNBB).

A propósito, fechando meu livro de poemas – “Percurso” -, escrevi esse poemeto:

                                        Brevíssimas

                                                  I

                                        Ser presidente,

                                        qualquer presidente,

                                        é ser refém das circunstâncias.

                                                   II

                                        O parlamento é o palco do faz-de-conta,

                                        salvo,

                                        salve a militância.

                                                   III

                                        A justiça é a arte de tornar crível

                                        o incrível,

                                         no vai-e-vem das instâncias.

Por favor, não me tomem como anarquista. Simplesmente, observador crítico do aparato estatal, confiando que mudança possa haver nesse cenário.

Então, é propício apresentar os avanços.

Tenho-os nos movimentos sociais.

Movimentos sociais que, congregando os esquecidos, os marginalizados, os invisíveis no tecido social estabelecido e discriminatório, promovem a cidadania ativa, o protagonismo reivindicatório, a afirmação de espaço próprio, não excludente do “stablishment”, mas incorporando-o, abrindo-o, de sorte que a sociedade não se componha de camadas verticalizadas de pessoas, mas signifique e expresse a colegialidade e a circularidade de todas as suas atrizes, de todos os seus atores, mulheres e homens construindo, diuturnamente, a unidade na diversidade.

Mais uma vez, o Papa Francisco:

“Em determinadas visões econômicas fechadas e monocromáticas, parece que não tem lugar, por exemplo, os Movimentos Populares que reúnem desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não entram facilmente nos canais já estabelecidos. Na realidade, criam variadas formas de economia popular e de produção comunitária. É necessário pensar a participação social, política e econômica segundo modalidades tais “que incluam os movimentos populares e animem as estruturas de governos locais, nacionais e internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na construção do destino comum” e, por sua vez, incentivar para que “estes movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem”. Mas fazê-lo sem trair o seu estilo característico, porque são “semeadores da mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como em uma poesia”. Nesse sentido são poetas sociais que, à sua maneira, trabalham, propõem, promovem e libertam. Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que implica superar “a ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida em um projeto que reúna os povos”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 169 – pg. 90/91 – edições CNBB – grifos do original).

Sejamos poetas sociais!

 

                                                     Paz e Bem!

quinta-feira, 7 de março de 2024

AMIZADE

             Iniciando meus estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, no ano de 1965, ouvi falar do Professor Pertence, assistente de ensino, pelos estudantes veteranos celebrado como excelente professor.

Não pude usufruir de seus conhecimentos jurídicos.

Demitira-se.

A razão?

Transcrevo poucos, mas sintomáticos parágrafos, redigidos pelo Professor Roberto Salmeron no livro que escreveu: “A universidade interrompida: Brasília 1964-1965”:

“Em outubro de 1965, um ano e meio depois das primeiras expulsões, um outro reitor foi designado pelo presidente da República, também por injunções políticas, os docentes sendo colocados diante de um fato consumado. Recém-chegado, em função havia cinco semanas apenas e ignorando tudo, realmente tudo sobre a universidade, chamou o Exército e a Polícia Militar para novamente a invadirem. E demitiu, arbitrariamente, mais dezesseis professores, sem acusação, e sem possibilidade de defesa, como tinha feito o seu antecessor. O pretexto, apresentado a posteriori, foi o de que eram indisciplinados, e indisciplina deveria ser considerada um aspecto da subversão”. (livro citado – pg. 25/26).

“Essa demissão coletiva, caso único na história de universidades no mundo, foi espontânea, não foi programada, nem dirigida do exterior, como alguns ridiculamente pretenderam. Devido à determinação e à união dos docentes houve quem duvidasse de sua espontaneidade. Por que tal atitude de 223 pessoas? Que fatos levaram tantos, conscientes e responsáveis, a se convencer de que não era mais possível continuar trabalhando nas condições que lhe eram impostas? A situação podia ser resumida numa frase em termos simples: seria possível manter a dignidade de cidadãos e de professores construindo uma universidade cujo corpo docente deveria estar sujeito às arbitrariedades de um reitor e de um ministro da Educação que julgavam normal receber instruções do Serviço Nacional de Informações, do Serviço Secreto do Exército e de outros serviços policiais? O ministro da Educação dizendo em entrevistas que educação é assunto de segurança nacional? (livro citado – pg. 27/28).

Anos depois, o advogado, Dr. Pertence, convida-me para conversa em seu escritório de advocacia. Vai lançar-se à presidência do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados, em Brasília, e quer constituir realidade plural, que congregasse conselheiros advindos da própria advocacia, particular e pública; do Ministério Público; do magistério superior. Ali estava eu como professor – lecionava Direito Processual Penal, e o fiz por vários anos – e como membro do Ministério Público federal.

Aceitei.

Aproximamo-nos, então, em frutuosas conversas e tantas caminhadas a visitar eleitores.

A eleição foi perdida, mas a amizade nascia.

A ditadura militar agonizava.

Tempos de redemocratização.

Importante, então, definir pessoa capaz de assumir a liderança do Ministério Público federal – o Procurador-Geral da República – justamente para que essa instituição não mais fosse subserviente, servil, aos caprichos do ditador de plantão, mas, e como “voz da Sociedade brasileira diante do Poder Judiciário” – expressão que cunhei e pela qual sempre me pautei – bem cumprisse com a sua vocação de defender a Democracia e a cidadania em todas as suas latitudes.

Luiz Carlos Sigmaringa Seixas e eu, coadjuvando-o porque Luiz Carlos tinha amplo espaço de articulação político-partidária, pusemo-nos a defender e a trabalhar o nome de Pertence para essa missão.

Assumindo o cargo, ele me convida para a chefia de gabinete com o intuito de estabelecer contínua interlocução com as/os colegas de todo o Brasil e cria a Secretaria de Coordenação de Defesa dos Direitos Individuais e Interesses Difusos: a SECODID, confiando-me esse trabalho.

O Ministério Público federal, a partir de então, despe-se e despede-se da condição de advogado do Poder Executivo, de advogado do general ditador de plantão, na ocasião, e passa a atuar, concretamente, principalmente valendo-se os seus membros do instrumento processual da ação civil pública, acionada em defesa das minorias, do meio-ambiente, do patrimônio cultural e histórico, da saúde pública.

Vocaciona-se, essencial e fundamentalmente, à defesa da Sociedade brasileira, comprometendo-se com a contínua afirmação do Estado Democrático de Direito.

Sob a ótica criminal, passa a interagir com as instâncias investigativas do Estado – polícia federal, fiscalização da receita federal, da previdência social do banco central, dentre outras – para que a persecução criminal se faça em escala ampla, sem embates corporativos, alcançando os autores dos chamados “crimes do colarinho branco”: os “tubarões”.

José Paulo Sepúlveda Pertence é o condutor firme na diuturna construção dessa nova realidade. É o artífice, dada a sua competência e respeitabilidade, do verdadeiro significado do que é ser Ministério Público, sua primeira opção profissional, exercida aqui, em Brasília, nos primórdios de 1960, da qual fora compulsoriamente afastado pelo arbítrio autoritário, instalado com o golpe militar de 1964.

Certo é, sem a menor dúvida, que não fosse o empenho e a dedicação de tantas e de tantos membros do Ministério Público federal no assumir e vivenciar, diuturnamente, essa missão constitucional, conferida à instituição na redemocratização de nosso Brasil, e nada teria acontecido, até porque as resistências internas se faziam sentir à manutenção do status quo.

A verdadeira liderança nunca é solitária.

O verdadeiro líder é aquele que, por seu testemunho profissional, propõe, estimula, agrega, caminha, então, junto e adiante.

Zé Paulo assim o foi.

Zé Paulo porque, para mim, nesse momento não era mais o Dr. Pertence da primeira conversa no escritório de advocacia.

O conhecimento mútuo cresceu. A amizade profunda consolidou-se. Irmanados, porque eu o via como meu irmão mais velho, e ele, na sua timidez e discrição, concedia-me esse sentimento de fraternidade. Irmanados, trilhamos os bons caminhos.

Depois, minha classe conferiu-me o primeiro lugar na lista tríplice para exercer o cargo de Procurador-Geral da República e o Presidente Lula acatou esse desejo da classe.

Cumpri o biênio 2003/2005.

Zé Paulo, decano do Supremo Tribunal Federal, e nós, como que lado a lado, nas sessões plenárias do Colegiado.

Aposentei-me dali a poucos anos, e espaçamos nossos encontros.

Neste ano, diante da barbaridade acontecida no 8 de janeiro, ele aderiu e fez questão de subscrever Manifesto, que a quase totalidade de ex-Procuradores-Gerais da República deu a público para a Sociedade brasileira.

Pelo que esse Documento tem de significado e compromisso, permito-me transcrevê-lo, integralmente, em anexo, ao presente artigo.

Também o faço como homenagem póstuma minha a Zé Paulo por tudo o que com ele aprendi.

Em maio passado, senti necessidade de estar com ele, pessoalmente.

Visitei-o em seu domicílio.

Algumas poucas, mas maravilhosas horas de conversas, e o vinho tinto, celebrando-as.

A amizade é isso.

Ser impelido para estar junto como irmãos. Então, reviver o passado, que se faz eterno presente, sem lugar para o futuro porque a amizade, como tantas outras expressões do amor, é: a amizade é.

Eis porque diz São Paulo em carta à comunidade de Corinto, e em palavras eternas a todas e a todos nós:

“O amor jamais acabará”. (1 Cor. 13, 8 – Bíblia Sagrada – Tradução da CNBB).

 

                                             Paz e Bem.

 


 

                 MANIFESTO À SOCIEDADE BRASILEIRA

Nós, que exercemos o cargo de Procurador-Geral da República e, por imperativo constitucional, nos comprometemos com a defesa da Democracia, assim nos manifestamos:

O binômio educação-saúde foi esfacelado no quadriênio governamental recém findo.

A formação de sociedade humanista foi menosprezada ante a estupidez armamentista, o isolamento mundial, a mais completa ausência de ideias e condutas sólidas e bem estruturadas em adequada fundamentação, objetivando a proteção do clima e do meio ambiente e a promoção integral da pessoa humana no amplo acesso de todas e de todos, brasileiras e brasileiros, aos bens culturais e materiais.

Os fatos, ontem consumados, fielmente retratam o que se vem de afirmar.

Gravíssimos porque atacam, contundentemente, a Democracia.

Na expressão mais lídima do Estado Democrático de Direito, que tais fatos sejam investigados e processados, civil, criminal e administrativamente, e que sejam responsabilizados seus autores, quer no plano da execução das condutas, quer no plano do financiamento à dita execução, quer no plano dos mandantes que, por ação ou omissão, estimularam a execução dessas condutas.

 

                                                Brasília, 9 de janeiro de 2023.

Raquel Elias Ferreira Dodge

Antônio Fernando Barros e Silva de Souza

Claudio Lemos Fonteles

José Paulo Sepulveda Pertence

Roberto Monteiro Gurgel

Rodrigo Janot Monteiro de Barros

    

 

  

domingo, 28 de maio de 2023

MISTÉRIO DA LUA

 

                              

 

Deparo-me com palavras do Papa Francisco, ditas por ocasião do Angelus de 22 de maio de 2020.

Ei-las:

Os primeiros cristãos, os teólogos dos primeiros séculos disseram que a comunidade dos cristãos, ou seja, a Igreja é o mistério da lua, porque dava luz, mas não tinha luz própria, tinha a luz que vinha de Cristo. Também nós devemos ser mistério da lua: dar a luz recebida do sol, que é o Cristo Senhor”.(grifos nossos).

Nos tempos presentes há muita escuridão.

Tudo é tão apressado, tão rápido, tão aceleradamente digitado.

Na vertigem da velocidade o ser humano celebra seu encantamento com a tecnologia, a sensação de que limites não há: nada mais lhe escapa, tudo lhe é possível realizar.

Oportuna e pertinente, nesse passo, a advertência do Papa Francisco, coerente com ensinamento do Papa Bento XVI:

“O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável: o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se de que “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza”. Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (Carta Encíclica Laudato Si – nº6 – pg. 7- Edições Paulinas).

As tragédias de todos os matizes disso provém.

A liberdade não é criação humana: “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza”.

Porque é natureza, o homem insere-se em convívio porque a natureza é o espaço aberto ao contínuo conviver entre todos os seres e com o próprio Deus. É a nossa casa comum. E a casa, porque comum, é a clara constatação de que somos seres relacionais, por isso que interligados, interdependentes.

Aliás, o Deus-Amor é pura relação posta na pericorese trinitária. A trindade expressa, vivamente, que o Deus-Amor não é solidão, mas comunhão do Pai e do Filho no Espírito Santo.

Todo amor é êxtase. Não se basta a si próprio. Não. Necessita sair de si – êxtase -, oferecer-se, encontrar-se. Nesse sentido podemos dizer que Jesus Cristo é o êxtase de Deus-Pai para o encontro conosco, suas amadas criaturas.

O filósofo Emmanuel Mounier, no seu livro O Personalismo, elabora perfeita síntese sobre o que é ser pessoa.

“A pessoa é uma interioridade que tem necessidade de uma exterioridade. A palavra existir indica, pelo seu prefixo, que ser é expandir-se, exprimir-se”. (O Personalismo – pg. 66 – Centauro Editora).

Bem adverte o Papa Francisco:

105. O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode preservar-nos dos tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar a rédea solta às próprias ambições como se acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 105 – pg. 59 – Edições CNBB).

É vital mudança de rumo na compreensão de nossa existência.

Há uma palavra de constante presença no Novo Testamento, como pontua, em artigo escrito, Piero Coda, palavra grega – adelphós -, ou seja, irmão, que os cristãos fazem viver porque “não significa um ideal a ser conquistado, mas uma realidade alcançada, uma dádiva recebida com a qual a existência e as relações entre os cristãos se identificam”. (Piero Coda: ”Por uma fundamentação teológica da categoria política da fraternidade”, no livro “O Princípio Esquecido” – pg. 77).

O princípio esquecido é o da fraternidade.

Como revivê-lo?

Responde o Papa Francisco:

“A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, “em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, das nossas sociedades, do nosso povo”. Nessa tarefa, cada um é capaz “de pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de onipotência, à vista concreta dos mais frágeis(...). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca sua carne, sente sua proximidade e, em alguns casos, até padece com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 115 – pg. 63 – edições CNBB – grifos nossos).

E prossegue:

“Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada, diria que algumas vezes a transformamos em um palavrão, não se pode dizer; mas uma palavra é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra, a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isso que os movimentos populares fazem. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 116 – pg. 64 – edições CNBB – grifos nossos).

Se cada uma, se cada um, de nós, em missão de voluntariado ou no desempenho de nossa atividade laboral, abrisse espaço para realizar, concreta e objetivamente, ação social, não importa a dimensão que tenha, mas que seja contínua, certamente a solidariedade, assim presente, torna-nos: “Mistério da Lua”.

 

                                                Paz e Bem.  

  

 

 

 

sexta-feira, 7 de abril de 2023

SEXTA-FEIRA DA SEMANA SANTA

 

                           

 

Sexta-feira da Semana Santa. Dia de silenciar. Silenciar para que  possamos cair em nós mesmos, sem nos deixarmos envolver pelos barulhos dispersivos, alienantes. O voltar-se para si próprio nos desmascara. A experiência necessária do “conhecer-se como se é conhecido” para ultrapassar preconceitos, oferecer-se ao saber ouvir e dispor-se à revisão de atos e condutas. Não somos seres imutáveis, acabados, monolíticos. Não! Somos, na medida em que nos abrimos, nos revelamos, vale dizer, tiramos os véus que nos aprisionam e, assim, partilhamos a construção cotidiana do bem comum.

Sexta-feira da Semana Santa. Dia de meditar. Meditar sobre o porquê de tantos acontecimentos de tempos recentes para cá, em nosso Brasil, tão estarrecedores. Por que a vida humana, mesmo no seu desabrochar, crianças, são assassinadas, brutalmente? Por que a postura de apregoar que todos nos armemos? Por que a difusão de gestos a mostrar revólveres, que matam? Por que enunciarmos palavras e considerarmos irmãs e irmãos nossos, porque todas e todos, brasileiras e brasileiros, como inimigos a serem destruídos?

Respondo com palavras tão exatas do Papa Francisco, lidas na sua Carta Encíclica Fratelli Tutti, e postas sob o título: “Recuperar a Amabilidade”:

222. O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim, acaba-se por tratá-los como incômodos, o que aumenta a agressividade. Isso acentua-se e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações catastróficas, momentos difíceis quando aflora o espírito do salve-se quem puder. Contudo, ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade. Há pessoas que fazem isso, tornando-se estrelas no meio da escuridão”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 222 – pg. 115 – grifos do original e meus).

Acrescento: a insensibilidade perene, característica peculiar de quem em tudo vê-se em campo de batalha, e em todas e em todos, que não estão no seu círculo, os têm como inimigos a serem abatidos, essa insensibilidade glacial, manipuladora através de bem orquestrado manejo das fake news, certamente é a causa de situações e fatos, que nos dilaceram.

Sexta-feira da Semana Santa. Dia de motivar. Motivar para que não nos deixemos letargiar por esse estado de coisas e adotemos cotidianos comportamentos que o superem, dissolvendo-o, para que não mais volte, tal estado de coisas, a acontecer em nosso Brasil.

Mais uma vez, o ensinamento do Papa Francisco:

223. São Paulo designa um fruto do Espírito Santo com a palavra grega chrestotes (Gl 5, 22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui essa qualidade ajuda os outros para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros que se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, como tentativa de aliviar o peso dos outros. Supõe “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam” em vez de “palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam” (AL. nº 100) ... O exercício da amabilidade não é um detalhe insignificante, nem uma atitude superficial ou burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura em uma sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 223/224 – pg. 115/116 – grifos do original e meus).

Que nós, brasileiras e brasileiros, possamos recuperar a amabilidade.

Assim, a Páscoa faz, eficazmente, sentido em nosso viver.   

 

quarta-feira, 8 de março de 2023

LISTA TRÍPLICE

 

                                           

 

É tema que tem aflorado na mídia, com certa insistência, saber se a lista tríplice, elaborada pelos membros do Ministério Público Federal, deve limitar o campo de ação do Presidente da República na escolha da/o Procuradora/or – Geral da República.

O tratamento dessa matéria, assim exclusivamente focado na lista tríplice, conduz-nos a grave equívoco.

Por que?

Porque o centro correto das discussões não reside no dado único e isolado da lista tríplice.

O centro das discussões está no como garantir a efetividade do princípio da independência funcional, constitucionalmente posto no §1º, do artigo 127, de nossa Constituição Federal para que os membros do Ministério Público, mormente a/o Procuradora/or – Geral da República, cumpram, sem subserviência, sem motivações subalternas, sem deliberadas omissões com a missão de defesa da Democracia e, portanto, dos interesses coletivos e individuais indisponíveis, vale dizer: da promoção do bem comum.

Isso assentado, óbvia a conclusão de que a forma de escolha da/o Procuradora/or – Geral da República, como presente no § 1º, do artigo 128, de nossa Constituição Federal, muito longe está de garantir efetividade ao princípio da independência funcional em relação a/o Procuradora/or – Geral da República.

Por que?

Porque o retro mencionado preceito constitucional entrega, solitária e exclusivamente, ao Presidente da República o escolher “dentre os integrantes da carreira” do Ministério Público da União a/o Procuradora/or- Geral da República.

Breve parêntesis: “integrantes da carreira” pressupõe as/os que estejam em pleno exercício funcional. Aposentadas e aposentados, portanto, por não mais integrarem a carreira, porque dela se desligaram, voluntária ou compulsoriamente, não são legitimados ao exercício desse cargo. Simples assim, sem lugar a malabarismos jurídicos.

Fechado o parêntesis, tornamos a ver o Presidente da República dotado de poder absoluto de escolha à chefia da Instituição, que, todavia, não se incrusta, por qualquer modo, no organograma do Poder Executivo. Instituição, portanto, que não é do governo, mas vocaciona-se à defesa da Sociedade brasileira, inclusive controlando a constitucionalidade e a legalidade dos atos governamentais, eis que expressa é a parte final, do artigo 127, da Constituição Federal:

“Artigo 127 - ... incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Como corrigir essa clara anomalia?

Fazendo valer, então, o princípio da independência funcional e assim,  modificando a redação do §1º, do artigo 128, da Constituição Federal, a que fique por bem expresso que:

- seja vedada a recondução de quem no exercício do cargo de Procuradora/or – Geral da República, que só exercerá esse cargo por 3 anos;

- seja vedada, durante o desempenho do mandato trienal, ou após a cessação desse desempenho, a designação para outro, e qualquer, cargo público;

Compondo esse quadro, agora sim e por coerência, limite-se que a escolha do Presidente da República recaia sobre um dos nomes que figure na lista tríplice, elaborada pelos integrantes da carreira do Ministério Público Federal.

Mas, por quê? Porque se limitar a elaboração da lista tríplice aos membros do Ministério Público Federal?

Aqui, permito-me convidar a leitora e o leitor a conhecer artigo que escrevi, intitulado: “A independência funcional: garantia constitucional da missão definida ao Ministério Público” e que pode ser lido no blog do Claudio Fonteles.

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

POR QUE SEMPRE ACONTECE O NATAL?

 

                  

 

Meditando sobre o significado do Natal, detive-me no porquê de sempre acontecer e escrevi essas palavras:

“O Deus-Amor nasce, a cada ano, justo para nos ensinar que não há ponto final porque somos seres extáticos, sempre saindo de nós mesmos para o encontro com os outros, todas e todos, irmãs e irmãos, e não seres estáticos, imobilizados e centrados em preconceitos de toda natureza”.

O Deus-Amor não permanece no mais alto dos céus.

Não.

Ele vem até nós; nos procura; nos chama; precisa de nós porque todo amor é comunicação, jamais solidão, e, assim, já nos ensina a viver.

Sua missão é ensinar, propondo-se a nós, jamais impondo-se porque todo amor é proposta, convite, e não imposição, comando.

Ensina-nos que “não há ponto final” daí porque seu nascimento acontece, e sempre acontecerá, enquanto vida humana houver sobre a face da terra.

Também “não há ponto final” porque “todo amor é extático” como disse um dia, num belo dia, o padre Paul Eugène Charbonneau. Com efeito, quem ama, verdadeiramente, não se contém. Necessita abrir-se; necessita oferecer-se; necessita envolver-se em família, em grupo, em sociedade.

O êxtase nos impele a sair de nós mesmos.

Gosto de dizer que “Jesus é o êxtase de Deus para a humanidade”, para nós, suas criaturas, assim tão eloquentemente por Ele amadas.

E “saímos de nós mesmos para o encontro com os outros, todas e todos, irmãs e irmãos” porque a fraternidade é a nossa meta, principalmente como cristãos.

Extraio de Piero Coda, no seu artigo “Por uma fundamentação teológica da categoria política da fraternidade”, essas palavras:

 

“1. A fraternidade é uma categoria essencialmente cristã, no sentido de que aprofunda suas raízes no evento de Jesus Cristo e, a partir desse evento, abre caminho na história. Na realidade, é impressionante a marcada presença de termos como adelphós (irmão), adelphótes (fraternidade), philadelphia (amor fraterno) no Novo Testamento. Chama a atenção, de modo especial, que adelphói (irmãos) seja o termo com o qual os próprios discípulos de Cristo se denominam e que o substantivo adelphótes (fraternidade; cf. 1Pd 2, 17; 5,9) não signifique um ideal a ser conquistado, mas uma realidade alcançada, uma dádiva recebida com a qual a existência e as relações entre os cristãos se identificam. Em outras palavras, a fraternidade é a peculiaridade da comunidade cristã, a atuação da novidade realizada por Jesus e, com isso, o fermento chamado a levedar, internamente, a massa de toda a humanidade”. (leia-se: O Princípio Esquecido – pg. 77, grifos do original).

E, pontuando perspectiva sociopolítica da fraternidade, afirma:

“A segunda consequência é que Jesus crucificado e abandonado mostra o único lugar a partir do qual pode nascer e se articular uma autêntica prática de fraternidade: a partilha com quem, de algum modo, é marginalizado e excluído. Expressões como “bem-aventurados os pobres...” e “o que fizeste ao menor, a mim o fizeste” não são simples modos de dizer. Pelo contrário, indicam que a fraternidade nasce somente a partir de baixo, do identificar-se, fazer-se um com os menores, porque Cristo se colocou nessa posição. E seria completamente ilusório e historicamente ineficaz acreditar que se possa estabelecer uma fraternidade prescindindo dessa medida, sempre de novo confrontada com o aspecto concreto do semblante de quem sofre”. (livro citado – pg. 81 – grifos do original).

O autocrata se imobiliza. Centra-se hermeticamente. Manipula e disfarça. É um mito, portanto uma mentira.

Abomina o ensino, a cultura, a arte, a ciência.

 

 

Não dialoga porque é parco de ideias e de palavras.

Refletindo sobre o que chamou “Uma Nova Cultura”, o Papa Francisco, e principiando por rememorar frase tão lúcida de nosso poeta Vinicius de Moraes –“A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida” -, bem ensina:

“215. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Já várias vezes convidei a desenvolver uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque “o todo é superior à parte” (EG n. 273). O poliedro representa uma sociedade em que as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isso implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspectos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes”. (leia-se: Carta Encíclica Fratelli Tutti sobre a Fraternidade e a Amizade Social – pg. 112).

O fim do ano de 2022, em nosso Brasil, marca o fim de um ciclo quadrienal que há de ser lembrado para ser esquecido.

Que renasça em nós, brasileiras e brasileiros, a alegria sadia, a firme leveza no acontecer diário, o diálogo respeitoso e fundamentado nas posições divergentes, enfim que a fraternidade não seja palavra escrita, ou dita, mas que vivida seja.

 

                                                                  Paz e Bem. Feliz Natal!    

  

 

 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

"ESCUTAR E RESPEITAR"

 

                                

 

Os autocratas de todos os matizes, centrados no egocentrismo doentio, fingem escutar, quer só escutando os que lhe são subservientes, quer não escutando os que se lhes apresentam para o diálogo seguro e construtivo.

Não respeitam, menosprezam. Atacam e satanizam, fazendo do opositor não o adversário a ser ouvido, mas o inimigo a ser destruído.

Apontando, objetivamente, caminhos, disse o Papa Francisco:

“Sublinhei a vocação do Cazaquistão a ser País do encontro: com efeito, nele convivem cerca de cento e cinquenta grupos étnicos e falam-se mais de oitenta línguas. Esta vocação, que se deve às suas características geográficas e à sua história – esta vocação de ser país de encontro, de cultura, de línguas – foi acolhida e abraçada como um caminho, que merece ser encorajado e apoiado. Também formulei votos para que ela possa prosseguir a construção de uma democracia cada vez mais madura, capaz de responder eficazmente às necessidades da sociedade como um todo. É uma tarefa árdua, que leva tempo, mas já se deve reconhecer que o Cazaquistão fez escolhas muito positivas como a dizer não às armas nucleares e a de boas políticas energéticas e ambientais. Isto foi corajoso. Num momento desta trágica guerra onde alguns pensam em armas nucleares – uma loucura – este país já desde o início disse não às armas nucleares”. (Palavras do Papa Francisco na Audiência Geral do dia 21 de setembro passado, na Praça de São Pedro, grifos do original).

“Fazer escolhas muito positivas, como dizer não às armas nucleares e a de boas práticas energéticas e ambientais”.

Sim, o encontro propicia o abandono das táticas de supremacia belingerante e a inserção no convívio enriquecedor da alteridade. O encontro também nos ensina que habitamos a casa comum, presente do Deus-Amor, presente que se descobre no perene cuidado para com os cenários vivos da natureza, que nos acolhe, abriga e alimenta.

 

Recordo-me, aqui, das estrofes iniciais da canção “Irmão Sol, Irmã Lua”, ode à pessoa maravilhosa que foi, é e sempre será em nossos corações, Francisco de Assis, estrofes assim apresentadas:

“Doce é sentir

em meu coração

humildemente

vai nascendo o amor

Doce é saber

não estou sozinho

sou uma parte

 de uma imensa vida

que generosa

reluz em torno a mim”.

No entanto, estamos a presenciar a estupidez da guerra Rússia-Ucrânia.

O mais grave: passado o momento da comoção coletiva, dita guerra cristalizou-se no nosso cotidiano e famílias continuamente despedaçadas, vidas seguidamente desfeitas, êxodo permanentemente dilacerante não nos incomodam porque não mais motivam o noticiário e, descuidados com o que acontece, simplesmente deletamos o que não nos atinge.

Como dizer que a guerra, ou conflitos aos pedaços, não nos atinge porque, geograficamente, longe de nós, ou mesmo restrita a espaço delimitado?

Eis a mais nítida constatação da insensibilidade, expressa no fechamento xenófobo, que dissemina o preconceito, o ódio, a violência a caracterizar comportamentos pessoais e coletivos.

Mais uma vez as palavras do Papa Francisco, na Audiência já aqui mencionada, como que partilhando a experiência que viveu por ocasião do 7º Congresso de Líderes das religiões mundiais e tradicionais, acontecido no Cazaquistão:

Disse o Papa:

“Esta iniciativa realiza-se há vinte anos pelas Autoridades do país, que se apresenta ao mundo como lugar de encontro e de diálogo, neste caso a nível religioso e, portanto, como protagonista na promoção da paz e da fraternidade humana. Foi a sétima edição deste congresso: um país que tem 30 anos de independência, realizou já 7 edições destes congressos, um a cada três anos. Isto significa colocar as religiões no centro do compromisso para a construção de um mundo onde nos escutamos e respeitamos na diversidade. E isto não é relativismo, não: é escutar e respeitar (trecho lido na Audiência Geral de 21 de setembro – grifos meus).

É fundamental que mulheres e homens de boa vontade, congregados, ou não, em religiões, mas todas e todos congregados, vocalizem e atuem em congressos, declarações, passeatas celebrativas, exercitando e assumindo, portanto e concretamente, comportamentos e atitudes que resgatem, realçando e comprometendo-se, também em protagonismo, com o destino da humanidade, que não pode ser monopolizado pelo poder econômico-tecnocrático, que instrumentaliza, sobrepondo-se e servindo-se, a atividade política, assim amesquinhada.

Encerro, transcrevendo, muito a propósito, a conclusão da Declaração firmada pelo Papa Francisco e por Ahmed Al-Tayyeb, Grão Iman de Al-Azhar, em Abu Dabhi, no dia 4 de fevereiro de 2019:

“Ao concluir, almejamos que esta Declaração:

Seja um convite à reconciliação e à fraternidade entre todos os crentes, mas ainda entre os crentes e os não-crentes, e entre todas as pessoas de boa vontade;

Seja um apelo a toda consciência viva que repudia a violência aberrante e o extremismo cego; um apelo a quem ama os valores da tolerância e da fraternidade, promovidos e encorajados pelas religiões;

Seja um testemunho da grandeza da fé em Deus, que une os corações e eleva a alma humana;

Seja um símbolo do abraço entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul e entre todos aqueles que acreditam que Deus nos criou para nos conhecermos, cooperarmos entre nós e vivermos como irmãos que se amam.

Isto é o que esperamos e tentaremos realizar a fim de alcançar uma paz universal de que gozem todos os homens nesta vida. (grifos do original).

 

                                                        Paz e Bem.