1964. O fatídico e tenebroso ano do
golpe militar que dilacerou gerações.
Nos primeiros três anos dessa década
de 1960, continuava-se a viver tempos tão propícios à construção do Brasil
desenvolvimentista em todos os setores: na educação, na literatura, na saúde,
na música, na agricultura, na indústria e no comércio, no esporte, nas relações
internacionais.
Eu, nos meus 18 anos, iniciando o 3º
ano do curso Clássico, voltado à área de concentração das ciências humanas,
arrebatado, em meio a tantas e tantos amigas e amigos, colegas, propondo-nos
contribuir, ativamente, na construção da sociedade brasileira que arrostasse os
desequilíbrios sociais, que franqueasse, sem limites, o acesso de todas e de
todos, nas peculiaridades de cada qual, ao banquete da vida em plenitude.
Hoje, em 2024, valho-me de texto da
advogada Izadora Gama Brito, intitulado “Teto, Pão e Renda”, posto no livro
“Realmar a economia – a Economia de Francisco e Clara”, assim escrito:
“É preciso disseminar a informação e travar a batalha de
ideias, disputando mentes e corações, resgatando a utopia das cidades como
lugar do bem viver, do viver comunitário, solidário, onde as cidades sirvam às
pessoas e não a coisas e à especulação imobiliária, grande aliada do capital
financeiro.
A cidade pela qual lutamos é aquela em que todas e todos
possam ser iguais socialmente, humanamente diferentes e livres de opressões,
explorações e discriminações. Esse horizonte de cidades é utópico, mas também
realista e necessário; é urgente! Nas palavras do Papa Francisco, nossa luta é
por “nenhuma família sem casa, nenhum
camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”. (artigo citado –
pg.214).
1965. Ingressando na
Universidade de Brasília para cursar a Faculdade de Direito, na esperança
juvenil de que se poderia, de algum modo, mantê-la firme nos seus propósitos de
pesquisa, docência e aprendizado inseridos em perene diálogo com a Sociedade.
Frustração e tristeza.
O quadro, a tanto
causar, bem o traça o Professor Roberto Salmeron no livro que escreveu: “A
Universidade interrompida: Brasília 1964-1965”:
“Em outubro de 1965, um ano e meio depois das primeiras
expulsões, um outro reitor foi designado pelo presidente da República, também
por injunções políticas, os docentes sendo colocados diante de um fato
consumado. Recém-chegado, em função que havia cinco semanas apenas e ignorando
tudo, realmente tudo sobre a universidade, chamou o Exército e a Polícia
Militar para novamente a invadirem. E demitiu, arbitrariamente, mais dezesseis
professores, sem acusação e sem possibilidade de defesa, como tinha feito o seu
antecessor. O pretexto apresentado a
posteriori, foi o de que eram indisciplinados, e indisciplina deveria ser
considerada um aspecto da subversão (livro citado – pg. 25/26).
Essa demissão coletiva, caso único na história de
universidades no mundo, foi espontânea, não foi programada, nem dirigida do
exterior, como alguns ridiculamente pretenderam. Devido à determinação e à
união dos docentes houve quem duvidasse da espontaneidade. Por que tal atitude
de 223 pessoas? Que fatos levaram tantos, conscientes e responsáveis, a se
convencer de que não era mais possível continuar trabalhando nas condições que
lhe eram impostas? A situação podia ser resumida numa frase em termos simples:
seria possível manter a dignidade de cidadãos e de professores construindo uma
universidade cujo corpo docente deveria estar sujeito às arbitrariedades de um
reitor e de um ministro da Educação que julgavam normal receber instruções do
Serviço Nacional de Informações e de outros serviços policiais? O ministro da
Educação dizendo em entrevistas que educação é assunto de segurança nacional?
(livro citado – pg. 27/28).
1973 a 2008 atuando no
Ministério Público federal e de 1971 até hoje dedicado ao ensino superior, por
muitos anos lecionando Direito Processual Penal e, a partir de 2009, Doutrina
Social da Igreja.
A oportunidade
desafiadora e valiosa de configurar o Ministério Público federal, a partir da
redemocratização, não mais como o advogado do Estado-Administração, mas o
defensor da cidadania plena na afirmação dos direitos coletivos e pessoais
indisponíveis. Servir à Sociedade brasileira no primado da Democracia, que
defende as minorias; o meio-ambiente; a cultura; a saúde; o patrimônio
histórico; o patrimônio público, e o agente promotor do zelo à paz pública,
fundamentalmente na persecução criminal à macrocriminalidade.
O magistério porque o
professor é o artífice da esperança. Promove e estimula a reflexão; o debate
respeitoso e fundamentado; vive os valores pelos quais vale a pena viver: a
fraternidade – o outro como o “meu outro eu” – e o empenho no compromisso
cotidiano à afirmação do bem comum.
Retrocessos e avanços.
Retrocessos no ambiente
político. A política afunda-se no jogo do compadrio; do “toma lá, dá cá”; do
poder pelo poder, travestido em jogadas de “marketing”, alimentadas,
inescrupulosamente, pelo uso das “fake news”.
Quão distantes estamos
dessas palavras, tão exatas do Papa Francisco, sobre o real significado do ser
político:
“Por isso, “a vida política autêntica, que se funda no
direito e em um diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de
que cada mulher, cada homem e cada geração carregam em si uma promessa que pode
irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais”.
197. Vista dessa maneira, a política é mais nobre do que a
aparência, o “marketing”, as diferentes formas de disfarce da mídia. Tudo isso
semeia apenas divisão, inimizade e um ceticismo desolador incapaz de apelar
para um projeto comum. Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser:
“Para quê? Para onde estou realmente indo? ”. Passados alguns anos, ao refletir
sobre o próprio passado, a pergunta não será: “Quantos me aprovaram, quantos
votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim? ”. As perguntas,
talvez dolorosas, serão: “Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz
progredir o meu povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais
construí? Que forças positivas desencadeei? Que paz social semeei? O que
produzi no lugar que me foi confiado? (Carta Encíclica Fratelli Tutti nº
196/197 – pg. 103/104 – edições CNBB).
A propósito, fechando
meu livro de poemas – “Percurso” -, escrevi esse poemeto:
Brevíssimas
I
Ser
presidente,
qualquer
presidente,
é ser
refém das circunstâncias.
II
O
parlamento é o palco do faz-de-conta,
salvo,
salve a
militância.
III
A
justiça é a arte de tornar crível
o incrível,
no
vai-e-vem das instâncias.
Por favor, não me tomem
como anarquista. Simplesmente, observador crítico do aparato estatal, confiando
que mudança possa haver nesse cenário.
Então, é propício
apresentar os avanços.
Tenho-os nos movimentos
sociais.
Movimentos sociais que,
congregando os esquecidos, os marginalizados, os invisíveis no tecido social
estabelecido e discriminatório, promovem a cidadania ativa, o protagonismo
reivindicatório, a afirmação de espaço próprio, não excludente do
“stablishment”, mas incorporando-o, abrindo-o, de sorte que a sociedade não se
componha de camadas verticalizadas de pessoas, mas signifique e expresse a
colegialidade e a circularidade de todas as suas atrizes, de todos os seus
atores, mulheres e homens construindo, diuturnamente, a unidade na diversidade.
Mais uma vez, o Papa
Francisco:
“Em determinadas visões econômicas fechadas e monocromáticas,
parece que não tem lugar, por exemplo, os Movimentos Populares que reúnem
desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não
entram facilmente nos canais já estabelecidos. Na realidade, criam variadas
formas de economia popular e de produção comunitária. É necessário pensar a
participação social, política e econômica segundo modalidades tais “que incluam
os movimentos populares e animem as estruturas de governos locais, nacionais e
internacionais com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos
excluídos na construção do destino comum” e, por sua vez, incentivar para que
“estes movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do
subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem”. Mas
fazê-lo sem trair o seu estilo característico, porque são “semeadores da
mudança, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e
grandes ações interligadas de modo criativo, como em uma poesia”. Nesse sentido
são poetas sociais que, à sua
maneira, trabalham, propõem, promovem e libertam. Com eles, será possível um
desenvolvimento humano integral, que implica superar “a ideia das políticas
sociais concebidas como uma política para
os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida em um projeto que reúna os povos”.
(Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 169 – pg. 90/91 – edições CNBB – grifos do
original).
Sejamos poetas sociais!
Paz e Bem!