domingo, 29 de novembro de 2015

LAUDATO SI (IV)


“105. Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder, porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência”. (Laudato Si pg. 85/86).
Que trecho tão admirável do Papa Francisco, constante do Capítulo III da Carta Encíclica “Laudato Si”, porque responde, com exatidão, a perguntas que nos ocorrem, tão presentemente: por que o desastre ecológico em Mariana? Por que a insana atitude de descarregar armas em irmãs e irmãos, eis que habitamos todos a casa comum, em ruas de Paris? Por que a compra e venda de comportamentos patrocinada por inescrupulosos políticos em Brasília?
Linhas adiante ao texto acima transcrito, o Papa Francisco como que, e coerentemente, sintetiza em conclusão:
“O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para controlá-lo. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, de uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si”. (Laudato Si, ainda nº 105 – pg. 86/87).
A propósito de lucidez, ocorre-me, aqui e agora, relembrar definição, a meu juízo, perfeita de Albert Camus:
“A lucidez supõe a resistência às tentações do ódio e ao culto da fatalidade.”
Vivemos o tempo das satisfações materializadas, epidérmicas, centralizadas na absolutização do eu, incontrolado. Não se deve resistir a nada. Somos movidos pelos impulsos vorazes, alimentados massivamente pela propaganda midiática do sucesso, ainda que provisório, ainda que passageiro: não importa, sou produzido para o encantamento mágico de sentir-me na “crista da onda”.
Ora, o ato de “resistir às tentações” é o significado eloquente de termos sido educados em valores que dignificam a pessoa, por isso que não podem ser abandonados. Valores que testemunham, cotidianamente, a integridade de caráter, a honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho na construção do bem comum. Valores que nos irmanam.
Não se render ao “culto da fatalidade” é, corajosamente, abdicar do “deixar-se levar no cínico anonimato do todo mundo age assim”: não aceitar que seja tragado pelo “mass-midia” e seja dissolvido na multidão amorfa; é, consciente e equilibradamente, não calar suas posições, abrir-se ao perene diálogo, sempre duvidar do politicamente correto e, assim, impedir que situações fabricadas definam o convívio social. Este, o convívio social, há de ser dinamicamente realizado na expressão histórica daqueles valores “que testemunham, cotidianamente, a integridade de caráter, a honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho na construção do bem comum”.
Importa, então, fazer-se artífice incansável da “civilização do amor”.
O absoluto existe. O amor expressa a certeza desta afirmação. Eis porque na 1ª Carta aos coríntios disse S. Paulo:
“O amor jamais acabará... Agora nós vemos num espelho, confusamente; mas, então, veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido. Atualmente, permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor. Mas a maior delas é o amor”. (Bíblia Sagrada – tradução da CNBB – edição comemorativa dos 500 anos da evangelização do Brasil e dos 50 anos da Conferência Episcopal – pg. 1500 e 1501).
Diz bem o Papa Francisco:
“Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza”. (Laudato Si nº117 – pg. 96/97).
E definitivo:
“Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de vendê-los ou utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do usa e joga fora que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade.Portanto, não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar”. (Laudato Si nº 123 – pg. 100/101).
Encerro, parodiando Albert Camus:
“A lucidez supõe a submissão da técnica à ética”.