“105. Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja
simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de
força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade
desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A
verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder, porque
o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do
ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência”. (Laudato Si
pg. 85/86).
Que trecho tão admirável
do Papa Francisco, constante do Capítulo III da Carta Encíclica “Laudato Si”,
porque responde, com exatidão, a perguntas que nos ocorrem, tão presentemente:
por que o desastre ecológico em Mariana? Por que a insana atitude de
descarregar armas em irmãs e irmãos, eis que habitamos todos a casa comum, em
ruas de Paris? Por que a compra e venda de comportamentos patrocinada por
inescrupulosos políticos em Brasília?
Linhas adiante ao texto
acima transcrito, o Papa Francisco como que, e coerentemente, sintetiza em
conclusão:
“O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade
adoece quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades
imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e
exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os
instrumentos para controlá-lo. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas
podemos afirmar que carece de uma ética sólida, de uma cultura e uma
espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um
lúcido domínio de si”. (Laudato Si, ainda nº 105 – pg. 86/87).
A propósito de lucidez,
ocorre-me, aqui e agora, relembrar definição, a meu juízo, perfeita de Albert
Camus:
“A lucidez supõe a
resistência às tentações do ódio e ao culto da fatalidade.”
Vivemos o tempo das
satisfações materializadas, epidérmicas, centralizadas na absolutização do eu,
incontrolado. Não se deve resistir a nada. Somos movidos pelos impulsos
vorazes, alimentados massivamente pela propaganda midiática do sucesso, ainda
que provisório, ainda que passageiro: não importa, sou produzido para o
encantamento mágico de sentir-me na “crista da onda”.
Ora, o ato de “resistir às tentações” é o significado
eloquente de termos sido educados em valores que dignificam a pessoa, por isso
que não podem ser abandonados. Valores que testemunham, cotidianamente, a
integridade de caráter, a honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho
na construção do bem comum. Valores que nos irmanam.
Não se render ao “culto da fatalidade” é, corajosamente,
abdicar do “deixar-se levar no cínico anonimato do todo mundo age assim”: não
aceitar que seja tragado pelo
“mass-midia” e seja dissolvido na multidão amorfa; é, consciente e
equilibradamente, não calar suas posições, abrir-se ao perene diálogo, sempre
duvidar do politicamente correto e, assim, impedir que situações fabricadas
definam o convívio social. Este, o convívio social, há de ser dinamicamente
realizado na expressão histórica daqueles valores “que testemunham, cotidianamente, a integridade de caráter, a
honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho na construção do bem
comum”.
Importa, então, fazer-se
artífice incansável da “civilização do
amor”.
O absoluto existe. O
amor expressa a certeza desta afirmação. Eis porque na 1ª Carta aos coríntios
disse S. Paulo:
“O amor jamais
acabará... Agora nós
vemos num espelho, confusamente; mas, então, veremos face a face. Agora,
conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou
conhecido. Atualmente, permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor. Mas a
maior delas é o amor”. (Bíblia Sagrada – tradução da CNBB – edição comemorativa
dos 500 anos da evangelização do Brasil e dos 50 anos da Conferência Episcopal
– pg. 1500 e 1501).
Diz bem o Papa
Francisco:
“Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância
de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar
alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria
natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da
realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua
existência porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra
da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a
revolta da natureza”. (Laudato Si nº117 – pg. 96/97).
E definitivo:
“Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora
das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver
para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o
comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção?
Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres
com a finalidade de vendê-los ou utilizar para experimentação, ou o descarte de
crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do usa e joga fora que produz tantos resíduos, só
pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade.Portanto,
não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam
suficientes para evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente, porque,
quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade
objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão
entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar”. (Laudato Si nº 123
– pg. 100/101).
Encerro, parodiando
Albert Camus:
“A lucidez supõe a submissão da técnica à ética”.