quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

AH! SE NÓS PUDÉSSEMOS

                                    

Homens há que tornam públicas cartas privadas, que escrevem, e que – tamanha lástima – revelam os apegos que têm a cargos públicos e ao loteamento dos mesmos para sempre gravitarem em torno de benesses espúrias.
Homens há que, transtornados pela insaciável sede de poder, maquinam ininterruptamente, engendram cotidianamente, esquemas ardilosos, valendo-se de um séquito de capachos, que lhe são agregados por inconfessáveis razões, irmanados todos em sucessão de barganhas.
Homens há que conspurcam até mesmo as práticas esportivas, enlameando atividades que deveriam se notabilizar pela competição transparente e cavalheiresca – o fair play -, transformando o que é sadia expressão de vida para todas as gerações em balcão corrupto de negociatas.
Homens há que, pelo mister profissional que desempenham, deveriam conduzir-se com discrição e cingir-se a pronunciamentos objetivamente fundamentados, mas resvalam para o estrelato e alimentam a ávida e superficial mídia jornalística com inadequadas afirmações porque carregadas de subjetivismo marcadamente emocional e rancoroso.
O Natal é o tempo propício para que não pactuemos com esse estado de coisas.
Não para que nos revoltemos, não para que percamos a esperança e nos tornemos lamurientos pessimistas, não para que execremos e excluamos essas pessoas.
O Natal, que é nascimento, é sempre a certeza do novo e a possibilidade presente, e real, do que nos escapa, mas que podemos alcançar: o imponderável que ultrapassa o inexorável.
Para valer-me do Papa Francisco, em escrito na Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia:
“Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, no comodismo que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói.” (Bula de Proclamação nº 15).
Sim, a indiferença, o comodismo e o cinismo obscurecem e impedem o sopro (= espírito) que a filiação divina nos legou, e que habita em nós, para que não desanimemos, para que, impulsionados, estejamos, sempre, não importa a dimensão do espaço atingido, mas estejamos, sempre, em missão.
Natal é despertar para a missão, e seguir.
Aliás, o convite do Deus-Amor é simples e definitivo: “segue-me”.
Jesus é o peregrino e o peregrino não se detém.
Deixo para vocês, leitoras e leitores de tanta paciência para comigo, como presença, não como presente, de Natal, essas palavras de D. Helder Câmara, lidas no livro “Um olhar sobre a cidade”:
“Se eu pudesse, à noite, no caminho das pessoas desanimadas, pessimistas, amargas, revoltadas contra tudo e contra todos, arranjaria roda de crianças brincando e cantando...
Se eu pudesse, na hora mais dura do enterro, quando o caixão é colocado terra adentro, eu faria com que voasse sobre as cabeças dos presentes um bando de passarinhos lembrando a Ressurreição.
Se eu pudesse na caminhada de quem enfrentasse estradas sem fim, sem luz, sem companhia, faria surgir vaga-lumes alumiando o caminho.
Se eu pudesse, daria ao arco-íris a força mágica de desfazer ódios, intrigas, divisões, de modo que ele valesse, de fato, como sinal de entendimento, de amizade e de paz.
Ah! Se eu pudesse! E se vocês pudessem, o que aconteceria?”


domingo, 29 de novembro de 2015

LAUDATO SI (IV)


“105. Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder, porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência”. (Laudato Si pg. 85/86).
Que trecho tão admirável do Papa Francisco, constante do Capítulo III da Carta Encíclica “Laudato Si”, porque responde, com exatidão, a perguntas que nos ocorrem, tão presentemente: por que o desastre ecológico em Mariana? Por que a insana atitude de descarregar armas em irmãs e irmãos, eis que habitamos todos a casa comum, em ruas de Paris? Por que a compra e venda de comportamentos patrocinada por inescrupulosos políticos em Brasília?
Linhas adiante ao texto acima transcrito, o Papa Francisco como que, e coerentemente, sintetiza em conclusão:
“O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para controlá-lo. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, de uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro de um lúcido domínio de si”. (Laudato Si, ainda nº 105 – pg. 86/87).
A propósito de lucidez, ocorre-me, aqui e agora, relembrar definição, a meu juízo, perfeita de Albert Camus:
“A lucidez supõe a resistência às tentações do ódio e ao culto da fatalidade.”
Vivemos o tempo das satisfações materializadas, epidérmicas, centralizadas na absolutização do eu, incontrolado. Não se deve resistir a nada. Somos movidos pelos impulsos vorazes, alimentados massivamente pela propaganda midiática do sucesso, ainda que provisório, ainda que passageiro: não importa, sou produzido para o encantamento mágico de sentir-me na “crista da onda”.
Ora, o ato de “resistir às tentações” é o significado eloquente de termos sido educados em valores que dignificam a pessoa, por isso que não podem ser abandonados. Valores que testemunham, cotidianamente, a integridade de caráter, a honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho na construção do bem comum. Valores que nos irmanam.
Não se render ao “culto da fatalidade” é, corajosamente, abdicar do “deixar-se levar no cínico anonimato do todo mundo age assim”: não aceitar que seja tragado pelo “mass-midia” e seja dissolvido na multidão amorfa; é, consciente e equilibradamente, não calar suas posições, abrir-se ao perene diálogo, sempre duvidar do politicamente correto e, assim, impedir que situações fabricadas definam o convívio social. Este, o convívio social, há de ser dinamicamente realizado na expressão histórica daqueles valores “que testemunham, cotidianamente, a integridade de caráter, a honestidade, a seriedade, a solidariedade, o empenho na construção do bem comum”.
Importa, então, fazer-se artífice incansável da “civilização do amor”.
O absoluto existe. O amor expressa a certeza desta afirmação. Eis porque na 1ª Carta aos coríntios disse S. Paulo:
“O amor jamais acabará... Agora nós vemos num espelho, confusamente; mas, então, veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido. Atualmente, permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor. Mas a maior delas é o amor”. (Bíblia Sagrada – tradução da CNBB – edição comemorativa dos 500 anos da evangelização do Brasil e dos 50 anos da Conferência Episcopal – pg. 1500 e 1501).
Diz bem o Papa Francisco:
“Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -, dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza”. (Laudato Si nº117 – pg. 96/97).
E definitivo:
“Se não há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora das aspirações próprias e das necessidades imediatas, que limites pode haver para o tráfico de seres humanos, a criminalidade organizada, o narcotráfico, o comércio de diamantes ensanguentados e de peles de animais em vias de extinção? Não é a mesma lógica relativista a que justifica a compra de órgãos dos pobres com a finalidade de vendê-los ou utilizar para experimentação, ou o descarte de crianças porque não correspondem ao desejo de seus pais? É a mesma lógica do usa e joga fora que produz tantos resíduos, só pelo desejo desordenado de consumir mais do que realmente se tem necessidade.Portanto, não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que afetam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar”. (Laudato Si nº 123 – pg. 100/101).
Encerro, parodiando Albert Camus:
“A lucidez supõe a submissão da técnica à ética”.

       

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

LAUDATO SI (III)

                                   
“Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original. Longe desse modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza”. (Laudato Si, nº 66, pg. 55 – edições Paulinas).
Tão apropriado esse trecho, praticamente abrindo o Capítulo II, da Encíclica Laudato Si, capítulo que se intitula: “Evangelho da Criação”.
Sim, “a Boa Nova” (=Evangelho) é também saber que, com todas as criaturas, tal nós também o somos, formamos a vida em integração contínua, por isso que a leitura da passagem do Gênesis a propósito da Palavra de Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gn 1, 28 tradução da Bíblia da CNBB), não pode ser leitura fundamentalista da supremacia prepotente da mulher e do homem sobre os demais seres da natureza, mas leitura que promova a incessante comunhão no “sentir-se reconciliado” e, assim, sem divisões ou inimizades, sentir a paz como expressão da inocência.
Sentir-se em paz é sentir-se acolhido e integrado.
É o que a vida nos pede: acolher e integrar todos e tudo.
Então, diz muito bem o Papa Francisco:
“A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses”. (Laudato Si, nº 75, pg. 62 – edições Paulinas).
O Deus-Amor, justo porque é pleno amor, nada impõe.
O Deus-Amor, por sua Palavra que é o Cristo Jesus – “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”, do Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 14 – tudo criou, “não do caos nem do acaso” (Laudato Si nº 77, pg. 63 – edições Paulinas), mas porque o amor não é solidão, necessariamente tem que criar e tem que se comunicar, para propor, para oferecer às suas criaturas – mulheres e homens – a vida em abundância, construída paulatinamente em atos de livre opção. Por isso, São Paulo diz aos gálatas: “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão”. (Gl 5, 1).
E a liberdade cristã, se define a mulher e o homem como seres únicos e irrepetíveis, todavia não considera a nossa unicidade e a nossa irrepetibilidade para a exaltação do egoísmo pessoal, enclausurado no self made man (=o homem feito exclusivamente por si mesmo), mas como  atributos pessoais e próprios, justamente para que assim sejam oferecidos aos demais, partilhados com os demais.
Torno às sábias palavras do Papa Francisco:
“86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. Santo Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade provem da intenção do primeiro agente o qual quis que o que falta a cada coisa para representar a bondade divina, seja suprida pelas outras, pois a sua bondade não pode ser convenientemente representada por uma só criatura”. (Laudato Si, nº 86, pg. 70 – edições Paulinas).
Toda a atitude de açambarcar, todo comportamento de dominar, todo o conduzir-se que se centraliza no absoluto poder, no absoluto prazer, no absoluto possuir é degradante e, no nosso Brasil, o cotidiano da corrupção e do desprezo à vida, pelas mais variadas formas, é o eloquente retrato do obscurantismo porque estampa o servilismo à coisificação a ponto de alcançar a própria coisificação do ser humano.
Eu já não sou; eu compro e vendo, inclusive a mim mesmo.
Mais uma vez, o Papa Francisco:
“Deixamos de notar que alguns se arrastam em uma miséria degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer o que fazer com o que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que os outros, como se tivessem nascido com maiores direitos.” (Laudato Si, nº 90/91, pgs. 74/75 – edições Paulinas).
Com toda coerência, o ensino social da Igreja católica, consolidado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, infelizmente desconhecido por expressiva quantidade de leigos e religiosos católicos – se o lessem e o pusessem em prática, certamente nossa casa comum estaria em condições muito melhores – enfatiza o princípio do bem comum como um dos seus pilares na construção de sociedade verdadeiramente humanista.
Pelo princípio do bem comum: “a responsabilidade de perseguir o bem comum compete não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois o bem comum é a razão de ser da autoridade política”. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja nº 168 – pg. 103).

No Brasil, e já há bom tempo, quão longe estão nossos representantes políticos desse fundamental ensinamento. Nós, e está em nossas mãos, pelo contínuo exercício da participação política consciente, devemos exercer a cidadania ativa porque, se não o fizermos, os que nos representam sentir-se-ão como nossos senhores, e não o são. Aqui, o tema é vasto e propiciaria novo artigo, mas para que eu próprio não incida na crítica que faço ao imobilismo de nossa cidadania, a vocês, amigas e amigos leitores, nos espaços de atuação de cada qual, eu proponho que nos engajemos na adoção de primeira, e concreta, medida: que todos nos irmanemos pelo fim da reeleição em todos os níveis – municipal, estadual e federal – e pelo fim da sucessão familiar de quem foi eleito para um único mandato.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

LAUDATO SI ( II )

                                           
Prosseguindo em nossas reflexões sobre essa fundamental Carta Encíclica do Papa Francisco, seu Capítulo I aborda: “o que está acontecendo com nossa casa”.
Marcando que nosso tempo é tempo acelerado – rapidación é o termo em espanhol de que se vale  Francisco – diz, com propriedade, o Papa:
“... os objetivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande parte da humanidade”. (LS nº 19 – pg. 17/18).
A exasperação tecnológico-financeira arvora-se na solução única dos problemas.
Ledo engano porque esse comportar-se reducionista e unilateral menospreza a compreensão da pluralidade, da interação das múltiplas e variadas relações, que só no encontro do que é diverso propicia o sentir e conhecer a harmonia a que a nossa casa, verdadeiramente, se faça a casa comum.
Diz bem Francisco:
“Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais, detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos altamente tóxicos e radioativos. A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo”. (LS nº 21 – pg. 19).
A ótica da quantidade desproporcional, pretensamente justificada pela acessibilidade para tantas e tantos, efetivamente mascara o desejo voraz de produzir e consumir incessantemente de modo que tudo conflua para essa espiral de troca contínua de coisas, e assim também todos nós nos coisificamos, naturalmente.
Elucidativa passagem do Papa Francisco, a propósito:
“Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de que este nível de intervenção humana, muitas vezes a serviço do sistema financeiro e do consumismo, faz com que essa terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas de consumo continua a avançar sem limite. Assim, parece que nos iludimos de poder substituir uma beleza irreparável e irrecuperável por outra criada por nós.” (LS nº 34 – pg. 30).
A intensa massificação não pode significar o aniquilamento do eu; não pode significar a perda da identidade pessoal, cultural, religiosa.
O discurso de São Paulo, no Areópago ateniense, manifestando o Deus-Amor como princípio e fim de todos e de tudo – “tendo estabelecido o ritmo dos tempos e os limites de sua (= da espécie humana) habitação (Atos dos Apóstolos 17, 26) – enfatiza a plena comunhão na formação do nós a partir e como fruto do existir de cada qual. Diz, então, São Paulo:
“Assim se fez para que buscassem a Deus e, talvez às apalpadelas, o encontrassem a ele que, na realidade, não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, nos movemos e existimos, como disseram alguns dentre vossos poetas”. (Atos dos Apóstolos 17, 27-28).
Francisco, também:
“Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. (LS nº 42 – pg. 34).
Sou, para que todos sejamos.
Não podemos aceitar que nos considerem como números, que nos manipulem, que nos tenham como massa de manobra.
O Papa Francisco ensina-nos em trecho tão marcante e perfeito da “Laudato Si”:
“A isto vem juntar-se as dinâmicas dos mass media e do mundo digital, que, quando se tornam onipresentes, não favorecem o desenvolvimento de uma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo desenvolvimento cultural da humanidade, e não em uma deterioração da sua riqueza mais profunda. A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, em uma espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir. (EG nº 47 – pg. 36/37).
O arremate, como o ponto central desse Capítulo I da Carta Encíclica “Laudato Si”, está  em que não se pode dissociar da abordagem ecológica a abordagem social.
“Mas, hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres. (LS nº 49 – pg. 39).
E o Papa Francisco apresenta o testemunho dos bispos da Patagônia-Comahue, testemunho veraz e concreto, que retrata cenário eloquente nas áreas subdesenvolvidas, ou em desenvolvimento, no mundo inteiro:
“Constatamos frequentemente que as empresas que assim procedem são  multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam suas atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais, desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras, colinas devastadas, rios poluídos e algumas poucas obras sociais que já não se podem sustentar”. (LS nº 51 – pg. 42)
Está saturado esse modelo centrado no exclusivismo do mercado financeiro, que tem como primado o economicismo tecnocrata e tecnológico.
Encerro com palavras exatas do Papa Francisco:

“Há regiões que já se encontram particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana. Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, percebemos depressa que a humanidade frustrou a expectativa divina”. (LS nº 61 – pg. 49/50).   

terça-feira, 4 de agosto de 2015

LAUDATO SI



Vou me deter na análise da Carta Encíclica do Papa Francisco, que assim se apresenta – Laudato Si (Louvado seja) -, atendendo a sugestões de pessoas amigas, nesse sentido.
Marcando que esse escrito é instrumento de “diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (Laudato Si – pg. 4, grifei), Francisco reafirma seu testemunho concreto de oferecer-se a mulheres e homens de todos os credos religiosos, ou sem credo algum, em perene empenho de ouvir e dizer, ou seja, de dialogar, sem preconceitos ou predisposições.
Relembra-nos sábias palavras do Papa Paulo VI, em discurso na FAO (Food Alimentary Organization), por ocasião do 25º aniversário desse importante organismo da ONU (Organização das Nações Unidas), proferidas há 45 anos, e completamente confirmadas nos dias de hoje. Disse, e é de se repetir, Paulo VI da possibilidade de uma “catástrofe ecológica sob o efeito da explosão da civilização industrial”, proclamando:
“a necessidade urgente de uma mudança radical no comportamento da humanidade, porque os progressos científicos mais extraordinários, as invenções técnicas mais assombrosas, se não estiverem unidos a um progresso social e moral, voltam-se necessariamente contra o homem.” (leia-se: Laudato Si – pg. 4/5).
No magistério do Papa Bento XVI, o Papa Francisco alerta-nos para o grave equívoco que perpetramos.
“O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável: o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se que o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas também é natureza. Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida onde nós somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos.” (leia-se: Laudato Si – pg. 7, grifei).
Ver-se unicamente a si mesmo” é a razão de ser da corrupção: tudo, em nós, centralizamos; de todos, a nós, impomos reverência, subjugação, bajulação.
A administração da polis (= cidade), a política, completamente distorcida de sua relevante razão de ser, exalta-nos no poder pelo poder, instrumentalizado na compra e venda de espúrias negociatas. O bem comum, o cuidado com a casa comum são expressões extintas, ou manipuladas por agentes públicos, que se fazem “última instância”, onde tudo lhes pertence, para que de tudo possam consumir, exclusivamente.
Essa concepção ufanista é medíocre como, aliás, são todas as concepções ufanistas.
É medíocre porque completamente incapaz de perceber a sacramentalidade do mundo, na partilha sem fronteiras.
Eis porque o Papa Francisco brinda-nos com palavras do Patriarca Ecumênico Bartolomeu, carregadas de sentido, e de poesia:
“... aceitar o mundo como sacramento de comunhão, como forma de partilhar com Deus e com o próximo em uma escala global. É nossa humilde convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira de nosso planeta.” (leia-se: Laudato Si – pg. 9/10).
Com essa transcrição, preparada está, em absoluta coerência, a reflexão que o Papa dedica a São Francisco de Assis, no contexto de sua Carta Encíclica. Ele diz:
“Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade.” (leia-se: Laudato Si – pg. 10).
Sim, eis a palavra-chave, para mim, de todo o ensinamento evangélico: cuidar.
O Deus-Amor, Jesus, o Cristo (= ungido) ensinou-nos e ensina-nos que amar é cuidar: acolhendo; sentando-se à mesa com; caminhando com; enfim pondo-se em comunhão. Toda comunhão é ato-momento de deixar-se cuidar por Deus para por-se a cuidar da irmã e do irmão.
Colho ideia tão apropriada do Papa Francisco, a propósito:
“A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio.” (leia-se: Laudato Si – pg. 12 grifei).
E, outra passagem, em sintonia fina com a que venho de transcrever:
O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor.” (leia-se: Laudato Si – pg. 12/13, grifei).
Crises, não há porque temê-las. Faz-se mister que existam. Hão de ser vistas como desafios a que melhor nos conheçamos, portanto, a que descubramos nossa verdade comum, construída a cada dia, com o concurso de todos.
Encerro este artigo com consideração final, posta em esperança, com que o Papa Francisco termina a apresentação, tão rica em ensinamentos da Laudato Si. Disse o Papa Francisco, em apelo:
“Espero que esta carta encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, nos ajude a reconhecer a grandeza, a urgência e a beleza do desafio que temos pela frente.” (leia-se: Laudato Si – pg. 14).
No artigo do próximo mês, concedam-me, amigas leitoras e amigos leitores, continuar conversando com vocês sobre tão fundamental Documento.




quinta-feira, 18 de junho de 2015

SOBRE BIOGRAFIAS E MENORIDADES

             "Cala a boca já morreu” foi a expressão captada de tudo quanto disse a ministra Carmen Lúcia no julgamento, que autorizou a publicação de biografias, independentemente da autorização do biografado (primeira página do jornal O Globo do dia 11 do mês em curso).
A frase não é feliz porque à expressão “cala a boca já morreu” segue-se “quem manda aqui sou eu”, que perfaz o dito popular, a significar, portanto, comportamento autoritário, comportamento esse criticado pela ministra e seus pares, sob o rótulo de censura prévia, no condicionar-se à autorização da pessoa, retratada em livro, a sua publicação.
Feliz também não é a chamada “cobertura jornalística” de decisões judiciais, porque quase sempre unilateralizada, assim inviabilizando a análise e compreensão dos temas por todos os seus pontos de abrangência e concepções, perde-se no emocionalismo das frases de efeito que, e como está a se ver, muito distante estão de propiciar o conhecimento integral do que se está a discutir.
Considero, a propósito, oportuníssimas as palavras do Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica, “A Alegria do Evangelho”, assim escritas:
“No mundo atual, com a velocidade das comunicações e a seleção interessada dos conteúdos feita pelos meios de comunicação social, a mensagem que anunciamos corre mais do que nunca o risco de aparecer mutilada e reduzida a alguns dos seus aspectos secundários”. (leia-se: Evangelii Gaudium nº 34 – pg. 31).
Tornando ao tema das biografias, a decisão do Supremo Tribunal Federal absolutizando o direito à liberdade de expressão sobre o direito à privacidade também não está correta.
Direitos tão fundamentais, quais sejam, o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão, quando em confronto, a solução jurídica não se dá pela prevalência de um sobre o outro, mas a solução jurídica aponta para a conciliação entre ambos.
E como se dá tal conciliação?
Simples: quem quer que queira escrever a biografia de outrem, faça-o, mas antes de publicar o escrito, submeta-o ao biografado que, em prazo não superior a 60 (sessenta) dias, há de se manifestar, apresentando suas razões, pelas quais repudia o trabalho do biógrafo. Este, se o desejar, provoque o Poder Judiciário para, então assim, obter a autorização judicial para a almejada publicação.
Equiparam-se os dois direitos fundamentais, impedindo-se que aconteça “o mal já está feito”, que mesmo ulterior e, certamente, bem tardia condenação do biógrafo, irresponsável e mesmo criminoso, justo por ser ulterior e tardia não se faz justa.
Retornemos ao açodamento midiático.
E eis que, premida pelas manchetes de jornais, delegada de polícia dá por concluída investigação sobre o latrocínio que vitima, médico que pedalava sua bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
Menores são apontados como os autores desse crime.
Desencadeia-se a excitação coletiva, direcionada à solução única, imediatista: que seja reduzida a maioridade penal.
Com o mero jogo de números, de 18 para 16 anos de idade, os prestidigitadores da política, sempre à caça de votos e permanência no poder, no embalo da profusão midiática, vendem esse “elixir da segurança pública”.
Olhos vendados, ninguém suscita o debate sobre a educação em nosso País, objetivando a adoção de medidas sérias e concretas para o resgate de valores fundantes, tais: a primazia da vida, a produção do conhecimento, a manifestação cultural ofertadas indiscriminadamente, e com qualidade.
Medidas sérias e concretas que signifiquem guinada radical (= que vá às raízes e não fique na superfície) no exercer o mandato governamental, cujo primeiro passo caracterize o priorizar a política educacional, a política alimentar, a política de saúde e colocar, em segundo plano, os instrumentos – é isso mesmo que são – os instrumentos econômico-financeiros, medidas sérias não são implementadas.
Em “pátria educadora”, o cenário tem como ator principal o Ministro da Educação e não o da Fazenda. Senão, “pátria educadora” é mais um slogan vazio e oportunista.
Leio que o latrocínio acontecido na Lagoa Rodrigo de Freitas está todo embaralhado. A investigação concluída, não mais está concluída: foi reaberta.
Leio, também, que o Supremo Tribunal Federal decidirá, ainda este ano, sobre a oferta do ensino religioso nas escolas públicas. Bem, esse tema ainda não está decidido; é salutar que o analisemos quando decidido for, desejando que não seja compreendido no: “cala a boca já morreu”. A propósito, e encerrando estas reflexões, mais uma vez tão pertinentes considerações do Papa Francisco:

“256. Ao questionar-se sobre a incidência pública da religião, é preciso distinguir diferentes modos de vivê-la. Tanto os intelectuais como os jornalistas caem, freqüentemente, em generalizações grosseiras e pouco acadêmicas, quando falam dos defeitos das religiões e, muitas vezes, não são capazes de distinguir que nem todos os crentes – nem todos os líderes religiosos – são iguais. Alguns políticos aproveitam esta confusão para justificar ações discriminatórias. Outras vezes, desprezam-se os escritos que surgiram no âmbito de uma convicção crente, esquecendo que os textos religiosos clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força motivadora que abre sempre novos horizontes, estimula o pensamento, engrandece a mente e a sensibilidade. São desprezados pela miopia dos racionalismos. Será razoável e inteligente relegá-los para a obscuridade só porque nasceram no contexto de uma crença reli possuem um valor racional, apesar de estarem permeados de símbolos e doutrina religiosos.” ( leia-se Evangelii Gaudium nº 256 – pg. 199/200).    

quarta-feira, 27 de maio de 2015

AÇÃO SOCIAL

                                             
É o compromisso assentado no Capítulo de Avaliação de nossa Fraternidade de São Francisco de Assis.
Compromisso que decorre da gênese mesma do ser franciscano, que bem se pode reconhecer no por-se a caminho, ir “às praças públicas” e testemunhar o Cristo ressuscitado pela pregação da Palavra, sim, a todas e todos, sem distinção, mas igualmente pelo envolvimento consciente e perseverante em ações, em missões concretas, de efetiva fraternidade.
São Francisco nunca esperou, sentado:
“... e Francisco, ouvindo que os discípulos não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa ou sacola, nem pão, nem bastão pelo caminho, nem ter calçados ou duas túnicas, mas pregar o Reino de Deus e a penitência, entusiasmou-se imediatamente no espírito de Deus. É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que eu desejo fazer com todas as fibras do coração.” (leia-se: Tomás de Celano – Primeira Vida de São Francisco – nº 22).
O Papa Francisco, no seu maravilhoso escrito “A Alegria do Evangelho”, justamente abordando “as tentações dos agentes pastorais”, com toda pertinência ensina:
“Hoje, por exemplo, tornou-se muito difícil nas paróquias conseguir catequistas que estejam preparados e perseverem no seu dever por vários anos. Mas algo parecido acontece com os sacerdotes que se preocupam obsessivamente com o seu tempo pessoal. Isto, muitas vezes, fica-se a dever a que as pessoas sentem imperiosamente necessidade de preservar os seus espaços de autonomia, como se uma tarefa de evangelização fosse um veneno perigoso e não uma resposta alegre ao amor de Deus que nos convoca para a missão e nos torna completos e fecundos. Alguns resistem a provar até ao fundo o gosto da missão e acabam mergulhados em um desânimo paralisante.” (Evangelii Gaudium nº 81 – pg. 69, grifei).
Eis porque eu, Claudio, não posso ater-me às reuniões, ainda que de formação para as irmãs e irmãos; de oração com as irmãs e os irmãos; e de convívio fraterno. Assim, em reuniões, mantenho-me no círculo fechado por mais gratificantes que essas reuniões possam ser.
Os textos, escritos nos números 14 e 15 de nossa Regra, são claríssimos:
14. Chamados, juntamente com todos os homens de boa vontade, a construírem um mundo mais fraterno e evangélico para a realização do Reino de Deus e conscientes de que quem segue a Cristo, Homem perfeito, também se torna mais homem, assumam as próprias responsabilidades com competência e em espírito cristão de serviço.
15. Estejam presentes pelo testemunho da própria vida humana, bem como por iniciativas corajosas, quer individuais, quer comunitárias, na promoção da justiça, particularmente no âmbito da vida pública, comprometendo-se com opções concretas e coerentes com sua fé.”
Somos chamados – o Amor, Deus, não é solidão – porque Deus sempre nos chama para que Ele seja amado, concretamente, na construção de um mundo mais fraterno e evangélico, e essa construção só acontece se assumirmos as próprias responsabilidades, vencendo o desânimo, o cansaço, a velhice, porque deixamos que nos invada e nos motive o espírito cristão de serviço. Eis o “martyrio”, ou seja, o testemunho da própria vida, que não nos imobiliza, não nos petrifica, mas nos impulsiona a iniciativas corajosas, para que promovamos a justiça em todos os âmbitos da vida pública.
Os preceitos de nossa Regra – e aqui está tão grande sabedoria de São Francisco – jamais podem ser considerados como normas impositivas, de coação, que nos obrigam como preceitos que estão fora de nós.
Nossa Regra, como mesmo se apresenta no Capítulo II, que se constitui na sua essência, é: “Forma de Vida”.
Portanto, tenhamos todos nossa Regra e demais textos normativos, que se lhe agregam, jamais como imposição fria e abstrata do que, fora de nós, repito, se nos sobrepõe, mas seja nossa Regra ensinamento que habita em nossos corações e, assim, em nossos corações permaneça para que possamos dar frutos, formando “um grande povo”. (leia-se: Tomás de Celano – Primeira Vida de São Francisco – nº 28)


                                                     Paz e Bem!                  

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Há tanto ruído, tanto barulho, tanta velocidade

         

Nessa semana, que findou, aproveitei-a, e bem, para silenciar, no cotidiano.
Há tanto ruído, tanto barulho, tanta velocidade.
Estamos todos centrados na mera informação. Os dedos, nervosos e agitados, não param de teclar. Deglutimos as notícias, sistematicamente bombásticas, produzidas aos borbotões, em avassaladora superficialidade, por isso que delas somos meros repetidores, incapazes de formular juízos críticos e fundamentados.
Como peixes, amontoados nas redes televisivas e digitais, somos espectadores passivos do desenlace fatal: as redes nos apanham, nos fascinam e nos prendem inexoravelmente.
As redes nos uniformizam e nos contingenciam: tudo é relativizado; não há mais certezas de coisa alguma; faz-se o que quiser, quando quiser, onde quiser, conquanto eu me sinta feliz e, assim, tudo se justifica no vago, porque sempre inútil e provisório, sentimento do bem-estar.
Despedaço-me em queda nos Alpes, mesmo que arraste mais de cem pessoas, comigo, nessa insana trajetória, porque já estou despedaçado e tudo o que faço é mentira para mim mesmo.
Disparo, frenética e insistentemente, armas que me chegam às mãos por parte daqueles, que as fabricam, mas contra o sistema dos quais digo combater, e promovo a brutalidade da morte, que me leva à destruição pela destruição, porque já não enxergo crianças, mulheres, idosos: mato porque já estou morto.
Corrompo e compro, corrompo e vendo-me porque me inebrio nas orgias dos sentidos, desfigurados, alçando-me - number one – por sobre todos e tudo, alimentando-me dos esquemas de poder e vassalagem: os sonhos que na juventude sonhei ou os pesadelos que na juventude pesaram-me, aos primeiros aboli, dos segundos vinguei-me extasiando-me na ilusão de que tudo posso.
Há tanto ruído, tanto barulho, tanta velocidade.
Alguém um dia disse: “foi para a liberdade que eu vos fiz livres”.
Nessa semana, que findou, com o irmão-amigo Elmo fui levar alimentos para pequena comunidade de mulheres – as clarissas – e jovem mulher, com sua tez clara, sorriso franco, doçura no falar e o hábito singelo nos fez viver fraternidade.
Nessa semana, que findou, com a amada e companheira Ângela vivemos episódios tão marcantes, porque tão espontâneos, simples e pobres em humilde comunidade.
Nessa semana, que findou, na singela gruta, no jardim daqui de casa, onde São Francisco, de joelhos, abre-me os braços, abraçamo-nos minha mãe Maria, Ângela, filhas e genros, filho, netos, sobrinha e sobrinhos, e sorrimos, e cantamos: a família no encontro das gerações.
Nessa semana, que findou, dentro de mim, a me mover, a frase de São Paulo: “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão” (Gl. 5,1).


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

CARNAVAL - QUARESMA

Tantas e tantos opõem carnaval à quaresma.                            
Eu não penso assim.
Essa dualidade em contraste, em dicotomia irredutível, é herança, presente e forte até hoje, da concepção platônica, que ensejou e motivou tantas outras concepções, no mesmo sentido fundante, que contrapõe corpo e espírito, mais das vezes satanizando o corpo.
O corpo é divino.
Assim não fosse, e Deus não se teria dele valido – “e o Verbo se fez carne” – para, corporalmente, se revelar e se comunicar a nós, suas filhas e seus filhos, por Ele tão amados, por isso que habitou entre nós, assumindo nossa condição humana: não nos deixou na solidão, nos consagrou em dignidade.
A complementaridade, só possível na heterogeneidade do corpo feminino e do corpo masculino, é o princípio da vida, síntese do encontro da mulher e do homem, no que deve ser a totalidade de cada um para a livre e consciente união conjugal: a entrega-doação.
Por isso, a celebração do carnaval na alegria espontânea, cordial (=  de coração ), fraterna é alegria saudável.
Lamentavelmente, o que é para ser carnaval, alegria espontânea, cordial (= de coração), fraterna, em tantas e tantas situações descamba para o agressivo, o grosseiro, o desrespeitoso, o aviltamento do próprio corpo, assumido como mercadoria exposta para o consumo fugaz.
Eis porque o corpo não pode ser absolutizado.
É limitado e a certeza de seu próprio limite é o fato, inexorável, da morte corporal: “tu és pó e ao pó tornarás”.
Vem-nos, então, em festejo seguinte: a quaresma.
A quaresma não como condenação do carnaval, não como expiação corporal.
A quaresma como abertura e vivência para o espírito, que somos.
Mulheres e homens somos os únicos seres capazes de Deus porque somos os únicos seres capazes de transcender, ou seja, de nos “movimentarmos para o alto” (= trans ascendere ), vale dizer: de sairmos de nós mesmos para a vida em comunhão fraterna, em missionariedade orante, não simplesmente militante, em discipulado que busca caminhar sempre como Jesus caminhou, apesar das limitações e fadigas de cada um de nós. Não desistir; persistir e caminhar sempre.
A quaresma é pausa necessária – jejum (= o conhecimento profundo de si mesmo); esmola (= solidariedade concreta e permanente com todos os que de solidariedade precisam); e oração (= diálogo, com ou sem fórmulas, com Deus) – sem a qual, certamente, no caminho nos perderíamos, ou dele desistiríamos.
Eis porque a quaresma não é simples período de tempo, posto no calendário, em sucessão ao carnaval.
A quaresma santifica o carnaval, sadiamente festejado, prolongando-o em outra dimensão.     


       

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

FAMÍLIA

                                           
Ângela e eu chegamos de Porto Alegre. Celebramos, com tantos outros familiares, 80 anos do tio João Batista, o irmão mais novo de meu pai Geraldo, que foi o irmão mais velho dessa geração dos Fonteles.
Várias gerações encontraram-se em Porto Alegre, que se fez, realmente, porto de chegada e alegre no encontro de tantas e tantos, vindos de lugares diversos.
A família é bem isso, como corretamente realça a Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II, a Gaudium et Spes: “lugar de encontro de várias gerações que reciprocamente se ajudam a alcançar uma sabedoria mais plena e a conciliar os direitos pessoais com as outras exigências da vida social” ( leia-se: Gaudium et Spes nº 52, § 2º ).
Sim, lugar de encontro, de acolhida, de ajuda e de aprendizado.
A mulher e o homem, em família a mãe e o pai, que geram a vida, presente na filha, no filho, ou em ambos, naturais ou adotivos, porque a geração não só se consuma no ato biológico, sagrado, da união do corpo e da alma da mulher e do homem, mas também se perfaz no ato de doação, sagrado, da mulher e do homem, expresso no adotar quem abandonado fora.
Somos seres relacionais, porque somos chamados ao amor.
A mulher e o homem, porque filhos do Deus-Amor, que os criou por amor, não existem para a solidão, mas para a comunhão.
Ninguém guarda o amor para si. O amor, necessariamente, é expansão, faz com que saiamos de nós mesmos e experimentemos o êxtase, que é o feliz sentimento de romper e abandonar o eu encarcerado no egocentrismo para que nos unamos, para que nos doemos ao outro - o alter-, ao que é diferente de nós mesmos.
Quem não é tomado de terna e profunda alegria ao admirar o abandono do bebê no regaço materno; ao admirar a euforia do pai erguendo em seus braços a filha, ou o filho; ao admirar o casal, já ancião, caminhando, mãos dadas, mais um dentre tantos caminhos percorridos; ao admirar a mulher e o homem que, nas tribulações do cotidiano, perseveram e, na surpresa do inesperado, expressam em gestos, em atos e, por vezes, mesmo no calar, o profundo significado do: eu te amo.
Vou lhes oferecer, leitoras e leitores, trecho de reflexão que o padre Gustave Desjardins – meu pai espiritual – deixou-nos, por escrito, justo sobre a família:
“A família não é somente a base da sociedade, senão o fundamento da religião. Nas épocas em que a família se desintegra, e não foi só agora, a religião entra em crise. A família é o termômetro da religião, e vice-versa. Quando a família tosse e está com calafrio, vai ver que sua religião está com febre, e vice-versa. Os sacerdotes mais importantes são vocês, pais e mães de família, não os que estão nas igrejas.” (leia-se: Homilias do Padre Gustave Desjardins – vol. 1 – pg. 166 ).
Nos dias de hoje, estamos tão desorientados que a religião é travestida. Com efeito, há os que em seu nome, covarde e brutalmente, assassinam; há os que também se dão ao direito de grosseiramente menoscabar o sentimento religioso dos demais.
Ora, todos quantos professam determinada religião, fazem-no porque não se consideram bastantes em si mesmos. Almejam religar-se ao Deus, que os criou, e os criou, por amor, reafirmo, tanto que não os abandonou, fazendo-se um de nós – Jesus, o Cristo – para os cristãos; ou falando pelos Profetas aos Povos do Livro – Alcorão e Torá -, como o fizeram Maomé e Isaias, respectivamente para nossas irmãs e nossos irmãos muçulmanos, e para nossas irmãs e nossos irmãos judeus.
Não há o Deus da morte, assim como não se pode ridicularizar, menoscabar, o Deus de quem quer que seja. Todavia, a conduta grosseira, de menoscabo, contra o sentimento religioso da pessoa não legitima o assassinato de quem assim se conduziu, mas o seu processamento criminal e cível pelo claro e ilegal abuso no direito de manifestar sua opinião, ou informação. E todo aquele que abusa do direito que tem, pelo abuso perde-o e, portanto, deve ser judicialmente punido.
Há poucos dias atrás, mais precisamente no dia 22 de dezembro de 2014, o Papa Francisco, falando para a Cúria romana, e relevando, à semelhança dos Padres do deserto que redigiram o “catálogo das doenças” a serem combatidas, o que chamou de “doenças curiais”, assim apresentou a primeira “doença”:
“1. A doença de sentir-se imortal, imune, ou mesmo indispensável, descuidando os controles habitualmente necessários. Uma Cúria que não se auto-critica, não se atualiza, nem procura melhorar é um corpo enfermo. Uma normal visita ao cemitério poder-nos-ia ajudar a ver os nomes de tantas pessoas, algumas das quais talvez pensassem que eram imortais, imunes e indispensáveis. É a doença do rico insensato do Evangelho, que pensava viver eternamente ( cf. Lc 12, 13-21)  e também daqueles que se transformam em patrões, sentindo-se superiores a todos e não ao serviço de todos.Tal doença deriva muitas vezes da patologia do poder, do complexo dos Eleitos, do narcisismo que se apaixona pela própria imagem e não vê a imagem de Deus gravada no rosto dos outros, especialmente dos mais frágeis e necessitados. O antídoto para esta epidemia é a graça de nos sentirmos pecadores e dizer com todo o coração:Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer (Lc 17, 10). ( leia-se a íntegra do Discurso em www.vatican.vagrifos do original ).