domingo, 24 de janeiro de 2021

E O QUE FAZ O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA?

 


 

“Quem decide se o povo vai viver em uma democracia ou ditadura são as Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não a apoiam”.

São palavras de Jair Messias Bolsonaro, ditas na segunda-feira, dia 18 de janeiro do ano em curso. (jornal Correio Braziliense de 19/01/2021 – pg. 4).

Palavras gravíssimas.

Primeiro porque enunciadas por quem preside a República Federativa do Brasil, definida como Estado Democrático de Direito e fundamentada na: soberania; na cidadania; na dignidade da pessoa humana; nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político.

Assim somos nós, brasileiras e brasileiros por nosso pacto de convivência social, elaborado por nossos representantes, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, e expresso no artigo 1º e seus cinco (5) incisos da Constituição Federal de 1988.

Segundo porque a missão das Forças Armadas, também definida em nossa Carta Constitucional, não é de julgar coisa alguma; não é de decidir nada de natureza política – tomado o termo política, aqui, como a significar a condução dos assuntos pertinentes ao interesse social e ao bem comum -; não é de imiscuir-se em assuntos que não os que, estrita e textualmente, postos no artigo 142 da Constituição Federal.

“Artigo 142: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Portanto, nas atribuições de “defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, lugar não há para que se tenha as Forças Armadas como juízes a decidir sobre a forma de governo: democracia ou ditadura.

Aliás, apresentando Jair Messias Bolsonaro, como opção a ser considerada, no mesmo patamar da democracia, a ditadura, sem a menor dúvida expõe a lesão o regime representativo e democrático.

Essa sua conduta tipifica-se, criminalmente, no âmbito da Lei nº 7170/1983 que, justamente, foi promulgada para descrever as condutas delituosas “que lesam ou expõe a perigo de lesão o regime representativo e democrático, a Federação, e o Estado de Direito (artigo 1º da Lei nº 7170/83, grifei).

E, dentre as condutas elencadas e definidas como crime está a de: “incitar à subversão da ordem pública e social”. (artigo 23, inciso I, da Lei nº 7170/83.

Ora, Jair Messias Bolsonaro, como presidente da República, em pronunciamento público que faz, propagando o que propaga – as Forças Armadas como juiz único sobre a forma de governo do Brasil: se democracia ou ditadura -, claramente motiva, incita seus correligionários – como aliás já o fez em fatos sob apuração em sede de inquérito judicial em tramitação no Supremo Tribunal Federal sobre comportamentos antidemocráticos – a indisporem-se contra o regime representativo e democrático.

O artigo 127 da Constituição Federal é textual no dizer que o Ministério Público, instituição permanente, tem sua razão de ser, o porquê de sua existência na “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

E o que faz o procurador geral da República, Augusto Aras, ante essa situação gravíssima?

Nada!

Cabe, para finalizar, a transcrição de sábia advertência que o Papa Francisco faz a propósito do “Fim da Consciência Histórica”:

“14. São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos de que “os povos que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência imposta, imperdoável negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma, perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, econômica e política”. Uma maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o empenho pela justiça é esvaziar de sentido ou manipular as “grandes palavras”. Que significado têm hoje palavras como “democracia”, “liberdade”, “justiça”, “unidade”? Foram manipuladas e desfiguradas para serem utilizadas como instrumentos de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 14 – pg. 17/18 – edições CNBB, grifei).

 

                                                      Paz e Bem!

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

É FUNDAMENTAL CONSTRUIR NOVO TEMPO

  


 

Ano que se finda, ano que se inaugura.

Tudo o que se encerra deve ser meditado, deve ser analisado. É ato de prudência, virtude de que tanto necessitamos.

“Importa tudo ponderar para reter o que é bom”, exortava São Paulo aos tessalonicenses em sua primeira epístola a essa comunidade (1Ts 5, 21).

Há os que assim não se conduzem.

Optam pela irracionalidade porque desprezam o diálogo.

Conclamam à violência porque destituídos de fraternidade.

De pensamento limitado e vocabulário restrito porque não estudam.

Lideranças há que assim se apresentam.

O que nos aconteceu?

Porque aceitamos, mas não só aceitamos, porque até colaboramos para que tal situação se apresentasse?

Considero que sentimentos de solidão doentia, decepção profunda, desesperança contínua, preconceitos variados alimentam a dor pungente da frustação e o vazio, que então se experimenta, fácil é de ser preenchido em bem elaborada atmosfera, que propicia a manipulação das consciências, arrastadas pelos slogans midiáticos, emaranhadas nas bombásticas e superficiais informações das redes sociais de que não se podem libertar.

Esvai-se a capacidade impostergável de discernir, isto é, de atingir o cerne, a essência da questão para bem situá-la e solucioná-la.

“Eu quero que o povo brasileiro todo se arme porque a vagabundagem já está armada” é a frase alardeada por Jair Bolsonaro, presidente da República, na pretensão de revogar o Estatuto do Desarmamento, como noticiada pela imprensa (jornal Correio Braziiense de 26 de dezembro de 2020 – pg. 3).

Refletindo sobre o perdão, diz o Papa Francisco em sua recente Carta Encíclica “Fratelli Tutti”:

“Se um delinquente cometeu um delito contra mim ou a um ente querido, nada me impede de exigir justiça e garantir que essa pessoa – ou qualquer outra – não volte a lesar-me nem cause a outros o mesmo dano. Cabe a mim fazer isso, e o perdão não só não anula essa necessidade, mas reclama-a.

242. O importante é não o fazer para alimentar um ódio que faz mal à alma da pessoa e à alma do nosso povo, ou por uma necessidade doentia de destruir o outro, desencadeando uma série de vinganças. Ninguém alcança a paz interior nem se reconcilia com a vida dessa maneira. A verdade é que “nenhuma família, nenhum grupo de vizinhos ou uma etnia e menos ainda um país tem futuro, se o motor que os une, congrega e cobre as diferenças é a vingança e o ódio. Não podemos concordar e nos unir para nos vingarmos, para fazermos àquele que foi violento o mesmo que ele nos fez, para planejarmos ocasiões de retaliação sob formatos aparentemente legais”. Assim não se ganha nada e, a longo prazo, perde-se tudo”.(Fratelli Tutti – nº 241/242, pg. 125 – edições CNBB – grifos meus).

Claríssimo está o completo despautério dos que incitam, dos que, presencial e reiteradamente, instigam à violência; sabotam, clara ou ardilosamente, comportamentos solidários em favor da saúde pública; gracejam, quando não se omitem, ante o quadro de sofrimento pandêmico, presentemente ultrapassando 200.000 mortes de irmãs brasileiras e de irmãos brasileiros.

Ao tratar de “Uma Nova Cultura” convida-nos, a tanto, o Papa Francisco, iniciando o texto com palavras do poeta e letrista Vinicius de Moraes, e diz:

“215. A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Já várias vezes convidei uma cultura de encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes porque “o todo é superior à parte” (EG. nº 237). O poliedro representa uma sociedade em que as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isso implica incluir as periferias. Quem vive nelas tem outro ponto de vista, vê aspectos da realidade que não se descobrem a partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 215, pg. 112 – edições CNBB – grifos meus).

Ainda o Papa Francisco em sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz, celebrado no dia 1º de janeiro deste ano de 2021, interroga-se e nos responde:

“As causas de conflitos são muitas, mas o resultado é sempre o mesmo: destruição e crise humanitária. Temos de parar e interrogar-nos: O que foi que levou a sentir o conflito como algo normal no mundo? E, sobretudo, como converter o nosso coração e mudar a nossa mentalidade para procurar verdadeiramente a paz na solidariedade e na fraternidade?

Quanta dispersão de recursos para armas, em particular para as armas nucleares, recursos que poderiam ser utilizados para prioridades mais significativas a fim de garantir a segurança das pessoas, como a promoção da paz e do desenvolvimento humano integral, o combate à pobreza, o remédio das carências sanitárias! Aliás, também isto é evidenciado por problemas globais como a atual pandemia Covid-19 e as mudanças climáticas. Como seria corajosa a decisão de criar um “Fundo Mundial” com o dinheiro que se gasta em armas e outras despesas militares, para poder eliminar a fome e contribuir para o desenvolvimento dos países mais pobres”! [21]. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz – 1º de janeiro de 2021 – nº7 – grifos meus).

Urge a construção de um novo tempo.

Não se pode mais abrir espaço à incompetência, à fanfarronice e à brutalidade.

Não se pode mais abrir espaço à complacência e à omissão. Aqui deploro, sem a menor dúvida, o comportamento do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, engavetando dezenas de pedidos de impeachment apresentados contra o presidente da República Jair Bolsonaro. Que se pronuncie, fundamentadamente, pelo sim, ou pelo não, mas que se pronuncie. A Democracia não se compraz com o silêncio.

O novo tempo deve se assentar no protagonismo das organizações sociais sérias e sólidas cujo único compromisso radica na concretização de atitudes e obras para a finalidade única que reside no realizar o bem comum.

O novo tempo não há de tolerar o profissionalismo da política: seja dado fim ao instituto da reeleição em todos os níveis; e também a familiaridade da política: o eleito impede que familiares se candidatem por até 20 anos após o término do cumprimento de seu mandato.

O novo tempo estimula o amplo debate, objetivo e motivado, encorajando, estimulando, o exercício da cidadania ativa.

O novo tempo constitui-se na vivência diária dos valores inegociáveis da paz, da justiça e da solidariedade.

Para mim, perfeitas essas palavras do Papa Francisco:

“223. São Paulo designa um fruto do Espírito Santo com a palavra grega chrestotes (Gl. 5, 22), que expressa um estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e conforta. A pessoa que possui essa qualidade ajuda os outros, para que a sua existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros, que se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não magoar com as palavras ou os gestos, como tentativa de aliviar o peso dos outros Supõe “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam”; em vez de “palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam” (AL. nº 100).

224. A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 223/224 – pg. 115/116, grifos meus).

 

 

                                                          Paz e Bem.

  

      

  

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Conhecendo a Doutrina Social da Igreja - Cartilha

Amigas e amigos seguidores do blog: iniciamos novo ano o que sempre nos motiva à ação. Desculpando-me por ser texto de cerca de 20 páginas, convido-lhes à leitura desta Cartilha, que nos propõe pegadas iniciais na compreensão da importante Doutrina Social da Igreja, mormente para que nos posicionemos em temas da atualidade.



APRESENTAÇÃO

Caros irmãos e irmãs em Cristo, Paz e Bem!

Com muita alegria, a comissão de Justiça, Paz Integridade da Criação e Obras Caritativas da Província São Maximiliano Maria Kolbe, da Ordem dos Frades Menores Conventuais, apresenta esta Cartilha sobre a primeira Parte do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, apresentado ao público pela Secretaria de Estado no dia 29 de junho de 2004.

A ideia da confecção da presente Cartilha se originou em uma das reflexões da mencionada comissão da Província. Claudio Fonteles, membro da mesma, pertencente à Ordem Franciscana Secular e professor da cadeira de Doutrina Social da Igreja, no Instituto São Boaventura (ISB) e no Seminário Maior da Arquidiocese de Brasília (SMAB), a sugeriu e se dispôs a elaborar tal Cartilha.

Esse texto tem como objetivo levar à reflexão sobre a importância do documento em estudo e à sua aplicabilidade nos tempos atuais. Acontece que quando se fala de obras caritativas, esquece-se da principal motivação que leva à ação do cristão: o amor de Deus à sua criação e, por consequência, a dignidade do homem e da mulher, parte da criação divina.

Nessa perspectiva, a presente Cartilha tem o papel de contribuir na formação permanente dos frades, dos irmãos e irmãs da vida consagrada e da Ordem Franciscana Secular. Contudo, a mesma não está restrita à família franciscana, mas é dirigida a todos os irmãos e irmãs que desejam vislumbrar os elementos que permeiam o Compêndio da Doutrina Social.

Em vista da formação permanente, a Cartilha foi estruturada em dos momentos: o primeiro contém uma reflexão sobre a primeira parte do Compêndio da Doutrina Social da Igreja; e no segundo momento encontram-se questões que levam o leitor a se posicionar diante das propostas do texto.

A comissão Justiça, Paz, Integridade da Criação e Obras Caritativas espera que todos possam apreciar esse texto preparado pelo nosso irmão Claudio Fonteles,

Boa leitura!

Brasília, 12 de dezembro de 2020 – Solenidade de Nossa Senhora de Guadalupe.

Frei Mayko Ataliba, OFMConv.

Presidente da Comissão JPIC e OC.

Frei Gilberto de Jesus Rodrigues, OFMConv.

Ministro Provincial


INTRODUÇÃO

Deliberou a Comissão do serviço de Justiça, Paz e Integridade da Criação e Obras Caritativas, da Província São Maximiliano Kolbe, pelo seu Presidente, Frei Mayko Ataliba, que me fosse entregue a tarefa de redigir Cartilha, objetivando pudessem dela extrair, leigas e leigos, religiosas e religiosos, notadamente vinculadas e vinculados à forma de viver de São Francisco de Assis, no seguimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, noções básicas da Doutrina Social da Igreja como ensinadas no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, dado a público no dia 29 de junho de 2004 pela Secretaria de Estado do Vaticano, na pessoa de seu Secretário Geral, o Cardeal Angelo Sodano.

A presente Cartilha cuida de analisar as diretrizes expostas na Primeira Parte desse Documento, jamais por modo exaustivo e minudente, mas como primeiro passo ao necessário conhecimento do tema proposto para que você, estimada leitora, estimado leitor, pessoal e comunitariamente, sejam motivados a testemunharem concretamente, no cotidiano de suas vidas, os ensinamentos preciosos dessa verdadeira Catequese Social.

Paz e Bem,

Claudio Fonteles.


I – O Significado da Doutrina Social da Igreja: a dignidade e a sociabilidade da pessoa humana.

Podemos nos perguntar: há necessidade, para o católico, membro ordenado, consagrado, ou leigo, do povo de Deus de conhecer a Doutrina Social da Igreja?

Por certo que sim.

De plano, amparo-me nas palavras do Papa emérito Bento XVI, proferidas no Discurso de Abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, no dia 13 de maio de 2007, no Santuário de Nossa Senhora Aparecida:

“No esforço para conhecer a mensagem de Cristo e fazê-la guia da própria vida, deve-se recordar que evangelização é sempre unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã. Amor a Deus e amor ao próximo fundem-se: no mais humilde encontramos o próprio Jesus e em Jesus encontramos Deus (Deus caritas est, 15). Assim será também necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o Compêndio da Doutrina Social da Igreja. A vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas”. (grifos do original e nossos).

Portanto, com muita clareza o Papa emérito Bento XVI sustenta que a vida cristã não se reduz a práticas de cultivo das virtudes estritamente pessoais, mas, de par com o aperfeiçoamento próprio, o cristão deve exercitar “virtudes


sociais e políticas”, ou seja, o cristão católico, para que assim o seja, não pode abandonar, não pode negligenciar com os compromissos comunitários.

E Bento XVI enfatiza que, ao lado da catequese individual, é também necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja”.

Como tal pode acontecer?

Responde, objetivamente, Bento XVI:

“...sendo muito útil para isso o Compêndio da Doutrina Social da Igreja”.

O Compêndio foi dado a público em 29 de junho de 2004 por correspondência do Cardeal Angelo Sodano, Secretário de Estado do Vaticano, endereçada ao Cardeal Renato Raffaele Martino, Presidente do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz, assim cumprindo determinação do Papa João Paulo II.

Em passo inicial, o Documento enfatiza que o Amor Trinitário revela “a intrínseca sociabilidade humana” (CDSI nº34 – pg. 33) daí porque a nossa razão de ser mostra-se sempre “no existir em relação, em referência ao outro eu”.

A Trindade Santa diz-nos que o nosso Deus não é solidão. O nosso Deus é comunhão.

Também o outro não está fora de nós, não nos é separado. O Outro é o meu outro eu, por isso que com ele me envolvo, decisivamente. Cabe, aqui, revivermos a atitude do bom samaritano, que se devota, concretamente, a quem nunca viu, a quem não pertencia a seu ambiente, mas se detém; inclina-se; acolhe e concretamente se doa, assumindo o seu outro eu.

Ressalta o Compêndio que:


“A salvação que, por iniciativa de Deus Pai, é oferecida em Jesus Cristo e é atualizada e difundida por obra do Espírito Santo, é salvação para todos os homens e do homem todo: é salvação universal e integral. Diz respeito à pessoa humana em todas as suas dimensões: pessoal e social, espiritual e corpórea, histórica e transcendente. Começa a realizar-se já na história, porque tudo o que é criado é bom e querido por Deus e porque o Filho de Deus se fez um de nós”. (CDSI nº 38 – pg. 35, grifos nossos).

Surge, aqui, dado extremamente importante.

Somos seres da integralidade. A pessoa humana é concebida “em todas as suas dimensões: pessoal e social, espiritual e corpórea, histórica e transcendente”.

Travamos, enquanto vivemos, o combate entre sermos amorosos e, então, nos integramos para nos entregarmos em fraternidade, ou sermos egoístas e, então, nos separamos e nos fechamos em nós mesmos. Não por acaso, a palavra grega “diabolous” significa tudo aquilo que separa, tudo aquilo que divide.

O trecho transcrito também realça que a história humana tem seu valor na medida em que viver é realizar as primícias do Reino de Deus, testemunhando os valores evangélicos e, afinal, porque Jesus Cristo fez-se um de nós, à exceção do pecado, partilhando nossa história não para suprimi-la, mas para, ensinando-nos, convidar-nos a elevá-la e, assim, abandonarmos a crença pelagiana de que somos o princípio e o fim último de todas as coisas a que nos conduz o sedutor delírio da técnica e da ciência, absolutizadas em si mesmas.

Esses tempos de pandemia alertam-nos, dentre tantas coisas, para quão frágeis somos. Oportuno, aqui, que sejam lidas as palavras do Papa Francisco, assim postas na Carta Encíclica Fratelli Tutti:

“7. Além disso, quando estava a redigir esta carta, interrompeu de forma inesperada a pandemia do Covid-19 que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes


países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.

8. Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente (...)precisamos de uma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos (...). Sozinho corres o risco de ter miragens, vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos (...). Sonhemos com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos”. (Carta Encíclica Tutti Fratelli – nº 7/8 – grifos do original e nossos).

Nessa mesma orientação, mesmo que marcados pela singularidade únicos e irrepetíveis -, singularidade que atesta o tanto do amor de Deus por nós, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja enfatiza que essa singularidade, insisto, dom de Deus para cada uma, para cada um de nós, não é para que nos enclausuremos nas atitudes egocêntricas, mas para que nos abramos e nos ofertemos ao con-viver social.

Eis a clara diretriz, presente no número 61 do Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“61. Único e irrepetível na sua individualidade, todo homem é um ser aberto à relação com os outros na sociedade. O con-viver social na rede de relações que interliga indivíduos, famílias, grupos intermédios, em relações de encontro, de comunicação e de reciprocidade, assegura ao viver uma qualidade melhor. O bem comum que eles buscam e conseguem, formando a comunidade social, é garantia do bem pessoal, familiar e associativo. Por estas razões, se origina e ganha forma a sociedade, com os seus componentes estruturais, ou seja, políticos, econômicos, jurídicos e culturais”. (CDSI nº 61 – pg. 45).

Ponto de relevo, posto no Documento, é o princípio reitor da dignidade da pessoa humana. Dignidade essa que é expressão natural de nossa filiação divina: somos filhos de Deus. Eis porque a pessoa humana tem primazia absoluta. A propósito, confira-se no Documento:

“Toda a vida social é expressão do seu inconfundível protagonista: a pessoa humana. De tal fato a Igreja sempre soube, amiúde e de muitos modos, fazer-se intérprete autorizada, reconhecendo e afirmando a centralidade da pessoa humana em todo o âmbito e manifestação da sociabilidade. A sociedade humana é objeto da doutrina social da Igreja, visto que ela não se encontra nem fora nem acima dos homens socialmente unidos, mas existe exclusivamente neles e, portanto, para eles”. (CDSI nº 106 – pg.71, grifos nossos).

E arremata:

“O homem, tomado na sua concretude histórica, representa o coração e a alma do ensinamento social católico. Toda a doutrina social se desenvolve, efetivamente, a partir do princípio que afirma a intangível dignidade da pessoa humana”. (CDSI nº 107 – pg. 72, grifos nossos).

Portanto, a compreensão do princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser concebida acanhadamente.

O Compêndio, por tal razão, acentua “a mesma dignidade, nível e valor” da mulher e do homem, o que lhes propicia viver “dinamismo de reciprocidade”, movimento esse que, “pelo dom sincero de si”, enseja que se descubram “como pessoas”. (CDSI nº 111 – pg. 74).

Ser pessoa é, sob essa perspectiva, cuidar. E o ato concreto, manifestação do cuidar, do ser responsável por alguém, ou por algo, é dar nome a pessoas e a coisas:

“O livro do Gênesis ensina, efetivamente, que o domínio do homem sobre o mundo consiste em dar nome às coisas (cf. Gn. 2,19-20): com a denominação o homem deve reconhecer as coisas pelo que são e estabelecer com cada uma delas uma relação de responsabilidade”. (CDSI nº 113 – pg. 74, grifos nossos).

Outro ponto fundamental sobre o ser pessoa é bem destacado no nº 125 do Compêndio:

“A pessoa não pode jamais ser pensada unicamente como absoluta individualidade, edificada por si mesma ou sobre si mesma, como se as suas características próprias não dependessem senão de si mesma. Nem pode ser pensada como pura célula de um organismo disposto a reconhecer-lhe, quando muito, um papel funcional no interior de um sistema. As concepções redutivas da plena verdade do homem foram já, frequentes vezes, objeto da solicitude social da Igreja, que não deixou de elevar sua voz contra estas e outras perspectivas, drasticamente redutivas...cuidando destarte que à afirmação do primado da pessoa não correspondesse uma visão individualista ou massificada”. (CDSI nº 125 – pg. 79/80, grifos nossos).

E faz-se fundamental essa compreensão do ser pessoa porque a afasta da exaltação do ego, centrado em si mesmo, absolutizado na busca desenfreada do poder, do possuir e do prazer, como também não permite que a pessoa seja diluída, seja dissolvida, na massificação onde todos perdem a própria individualidade. Para o pensamento social da Igreja há que se cuidar, como acima transcrito:

“...destarte que à afirmação do primado da pessoa não correspondesse uma visão individualista ou massificada”.

Por isso, bem concluiu o Compêndio:

“132. Uma sociedade justa só pode ser realizada no respeito pela dignidade transcendente da pessoa humana. Esta representa o fim último da sociedade a que ela é ordenada...O respeito pela dignidade da pessoa humana não pode absolutamente prescindir da obediência ao princípio de considerar o próximo como outro eu, sem excetuar nenhum, levando em consideração antes de tudo a sua vida e os meios necessários para mantê-la dignamente. É necessário, portanto, que todos os programas sociais, científicos e culturais sejam orientados pela consciência do primado de cada ser humano”. (CDSI nº 132 – pg. 83, grifos nossos).

A expressão, acima transcrita, “dignidade transcendente da pessoa humana” revela, inequivocamente, que, a despeito de nossa natureza criatural, o fato de sermos criaturas não nos torna insignificantes aos olhos do Deus Criador, o Deus Amor, que tanto e tanto nos ama, que nos deu a conhecer tudo de Si, pela Palavra, Jesus Cristo, o Logos de Deus Pai. Eis porque diz o evangelista João:

“Já não vos chamo servos porque o servo não sabe o que seu senhor faz, mas eu vos chamo amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu vos dei a conhecer”. (Evangelho de São João 15, 15, grifos nossos).

Se menosprezamos, abandonamos, repudiamos mesmo, essa relação amorosa Criador-criatura, fazendo-nos deuses, inebriados na compreensão completamente equivocada do que é ser livre, destruímo-nos e a todos, e a tudo com quem convivemos.

Ensina o Compêndio:

“...Recusando muitas vezes a reconhecer Deus como seu princípio, o homem destruiu a devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia consigo mesmo, com outros homens e com as coisas criadas. A liberdade do homem necessita, portanto, ser libertada. Cristo, com a força do Seu mistério pascal, liberta o homem do amor desordenado a si mesmo, que é fonte do desprezo do próximo e das relações caracterizadas pelo domínio sobre o outro; Ele revela que a liberdade se realiza no dom sincero de si e, com o Seu sacrifício na Cruz, reintroduz todo homem na comunhão com Deus e com os próprios semelhantes”. (CDSI nº 143 – pg. 88, grifos do original).

A vida em comunhão plena é, portanto, “ o primeiro direito a ser enunciado neste elenco, desde o momento de sua concepção até ao seu fim natural”. (CDSI nº 155 – pg. 95, grifos nossos).

Por isso, à mulher e ao homem, Deus lhes confia o “ser guardiães da vida”, pelo modo assim tão bem colocado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem se completam mutuamente, não somente do ponto de vista físico e psíquico, mas também ontológico. É somente graças a essa dualidade do masculino e do feminino que o humano se realiza plenamente. É a unidade dos dois, ou seja, uma unidualidade relacional, que permite a cada um sentir a própria relação interpessoal e recíproca como um dom que é, ao mesmo tempo, uma missão. A esta unidade dos dois está confiada por Deus não só a obra da procriação e a vida da família, mas a construção mesma da história. A mulher é ajuda para o homem, como o homem é ajuda para a mulher: no encontro de ambos realiza-se uma concepção unitária da pessoa humana, baseada não na lógica do egocentrismo e da autoafirmação, mas na lógica do amor e da solidariedade”. (CDSI nº 147 – pg. 90, grifos do original e nossos).


II - Os Princípios da Doutrina Social da Igreja.

Importa, de plano, afirmar que os princípios da Doutrina Social da Igreja, que vamos detalhar, e que emanam todos do princípio reitor da dignidade da pessoa humana, estão unidos, conectados e totalmente articulados entre si, de modo que não podem ser tomados isoladamente.

Princípio do Bem Comum:

Apresenta-o o Compêndio da Doutrina Social:

“O bem comum não consiste na simples soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social. Sendo de todos e de cada um é e permanece comum porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo também em vista do futuro. Assim como o agir moral do indivíduo se realiza em fazendo o bem, assim o agir social alcança a plenitude realizando o bem comum...165. Uma sociedade que, em todos os níveis, quer intencionalmente estar ao serviço do ser humano é a que se propõe como meta prioritária o bem comum, enquanto bem de todos os homens e do homem todo. A pessoa não pode encontrar plena realização somente em si mesma, prescindindo do seu ser com e pelos outros”. (CDSI nº 164/165 – pg. 101, grifos do original e nossos).

Num tempo marcadamente egocêntrico e solitário, a Doutrina Social da Igreja convida-nos ao “ser com e pelos outros”.

As tarefas da construção cidadã só podem ser realizadas na contribuição comunitária nos mais variados espaços onde possam ser sentidas e vividas: vizinhança, bairro, associações, paróquias, organizações não governamentais, etc.

Todavia, o bem comum não é objetivo exclusivo de cada um de nós.

Afirma o Compêndio:

“168. A responsabilidade de perseguir o bem comum compete não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois que o bem comum é a razão de ser da autoridade política. Na verdade, o Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil de que é expressão, de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. O indivíduo humano, a família, os corpos intermédios não são capazes por si de chegar a seu pleno desenvolvimento, daí serem necessárias as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários – materiais, culturais, morais, espirituais – para levar uma vida verdadeiramente humana. O fim da vida social é o bem comum historicamente realizável. (CDSI nº 168 – pg. 103, grifos do original e nossos).

Quão distantes estamos desse enunciado da Doutrina Social da Igreja.

Mulher e homem, que hoje dedicam-se à política, fazem-no, em sua grande maioria, para auferir vantagens estritamente pessoais.

Abroquelam-se em infindáveis reeleições e se transformam em deletérios políticos profissionais.

Fomentam arranjos para que, além de si mesmos, filhos, netos, esposas e parentes outros também obtenham o mandato popular. Familiarizam a atividade política, conspurcando-a totalmente.

E o que é gravíssimo: católicas e católicos há – assim o dizem – que, apregoando essa sua opção religiosa, cativam o voto do eleitorado e, uma vez eleitos, divorciam-se, completamente, das diretrizes postas no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. De par com o Princípio do Bem Comum, a doutrina social católica apresenta o Princípio da Destinação Universal dos Bens.

Diz o Compêndio:

“172. O princípio da destinação universal dos bens da terra está na base do direito universal ao uso dos bens. Todo homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social e princípio típico da doutrina social cristã. Por esta razão, a Igreja considerou necessário precisar-lhe a natureza e as características. Trata-se, antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica; ademais, tal direito é original. É inerente à pessoa singularmente considerada, a cada pessoa, e é prioritário em relação a qualquer intervenção humana sobre os bens, a qualquer regulamentação jurídica dos mesmos, a qualquer sistema e método econômico-social”. (CDSI nº 172 – pg. 104/105, grifos do original).

Todas e todos têm o inesgotável direito ao uso dos bens, imateriais e materiais, porque, sem essa perspectiva, a pessoa humana não se desenvolve, impedida fica de se promover pessoal e comunitariamente.

Esse direito é inerente à nossa natureza, à nossa filiação divina, que nos oferece a vida e “a vida em abundância”, conforme está expresso no Evangelho de São João – capítulo 10, versículo 10 -. Esse direito, portanto, não é concessão da legislação humana. Está em plano muito mais elevado, repito, dada a nossa filiação divina.

Eis porque se seguem as afirmações assim escritas no Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“A doutrina social requer que a propriedade dos bens seja equitativamente acessível a todos, de modo que todos sejam, ao menos em certa medida, proprietários, e exclui o recurso a formas de domínio comum e promíscuo”. (CDSI nº 176 - pg. 106, grifos do original).

Sim, a massificação – “domínio comum e promíscuo – é sempre danosa.

Há que se encorajar a iniciativa pessoal e comunitária que bem se traduzem na economia familiar e nas cooperativas de pequenos e médios produtores.

Assim como a massificação despersonalizante, também os conglomerados centralizadores abafam e eliminam a criação própria e de grupos específicos, impedindo possam, mulheres e homens, sentirem-se “ao menos em certa medida, proprietários”.

“A tradição cristã nunca reconheceu o direito à propriedade privada como absoluto e intocável. Pelo contrário, sempre o entendeu no contexto mais vasto do direito comum de todos a utilizarem os bens da criação inteira: o direito à propriedade privada está subordinado ao direito ao uso comum, subordinado à destinação universal dos bens”. (CDSI nº 177 – pg. 106, grifos do original).

Sim, absolutizar a propriedade privada rompe com o ensinamento evangélico que prioriza a partilha como testemunho manifesto do amor fraterno.

Eis porque, com sabedoria, acrescenta o Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“O ensinamento social da Igreja exorta a reconhecer a função social de qualquer forma de posse privada, com a clara referência às exigências imprescindíveis do bem comum...Cada pessoa, ao agir, não pode prescindir dos efeitos do uso dos próprios recursos, mas deve atuar de modo a perseguir, além da vantagem pessoal e familiar, igualmente o bem comum. Donde decorre o dever dos proprietários de não manterem ociosos os bens possuídos e de os destinarem à atividade produtiva, também confiando-os a quem tem desejo e capacidade de os fazer produzir”. (CDSI nº 178 – pg. 107, grifos do original e nossos).

E, na coerência do que vem sendo apresentado, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja traz lúcida compreensão sobre “a opção preferencial pelos pobres”.

“182. O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo o caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impede um crescimento adequado. A esse respeito deve ser reafirmada, em toda a sua força, a opção preferencial pelos pobres...Ela concerne à vida de cada cristão, enquanto deve ser imitação da vida de Cristo; mas aplica-se igualmente às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens. Mais ainda: hoje, dada a dimensão mundial que a questão social assumiu, este amor preferencial, com as decisões que ele nos inspira, não pode deixar de abranger as imensas multidões de famintos, mendigos, sem-teto, sem assistência médica e, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor”. (CDSI nº 182 – pg. 109, grifos do original e nossos).

Evitando, sempre, qualquer concepção reducionista porque, obviamente, não condiz com a visão, presente no Evangelho, de integralidade da pessoa humana, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja realça que a opção preferencial pelos pobres não se limita à pobreza em sentido material, mas “também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa”. (CDSI nº 184 – pg. 110, grifos nossos).

A promoção da mulher e do homem há de se fazer por inteiro, na totalidade do ser pessoa.

Encerrando a análise desse princípio da destinação universal dos bens, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja reaviva palavras postas na Epístola de São Tiago no nº 184 – pg. 111:

“O amor pelos pobres é, certamente, incompatível com o amor imoderado pelas riquezas ou o uso egoístico delas. (cf. Tg. 5, 1-6)” . (CDSI nº 184 – pg. 111, grifos nossos).

Desponta, no itinerário dos princípios, o Princípio da Subsidiariedade.

Após assinalar que “ a subsidiariedade está entre as mais constantes e características diretrizes da doutrina social da Igreja” (CDSI nº 185 – pg. 111), o Compêndio da Doutrina Social da Igreja assim define esse princípio:

“É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária, graças à subjetividade criadora do cidadão. A rede destas relações inerva o tecido social e constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade”. (CDSI nº 185 – pg. 111, grifos do original).

Aí está: na relação Sociedade Civil – Estado, prepondera a Sociedade Civil.

O Estado é auxiliar da Sociedade Civil, subsidia-a no desempenho das tarefas comunitárias.

O Estado não é o todo-poderoso, provedor de tudo, como hoje se tem, mas o Estado deve assumir, como governo e administração, comportamento motivador para que a Sociedade Civil protagonize, por suas cidadãs e seus cidadãos, a diuturna construção de sua história.

Por isso, bem registra o Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“À subsidiariedade entendida em sentido positivo, como ajuda econômica, institucional, legislativa oferecida às entidades sociais menores, corresponde uma série de implicações em negativo, que impõem ao Estado abster-se de tudo o que, de fato, venha a restringir o espaço vital das células menores e essenciais da sociedade. Não se deve suplantar sua iniciativa, liberdade e responsabilidade...Com o princípio da subsidiariedade estão em contraste formas de centralização, de burocratização, de assistencialismo, de presença injustificada e excessiva do Estado e do aparato público”. (CDSI nº 187 – pg. 112, grifos do original e nossos).

Vital, para que tudo não permaneça em mera abstração, em mero enunciado, para que, então, seja concretizado o princípio da Subsidiariedade, que todos nós, mulheres e homens, exercitemos, concreta e verdadeiramente, o Princípio da Participação, decorrência, portanto imprescindível do Princípio da Subsidiariedade, assim lido no Compêndio:

“Consequência característica da subsidiariedade é a participação, que se exprime, essencialmente, em uma série de atividades mediante as quais o cidadão, como indivíduo ou associado com outros, diretamente ou por meio de representantes, contribui para a vida cultural, econômica, política e social da comunidade civil a que pertence: a participação é um dever a ser conscientemente exercitado por todos, de modo responsável e em vista do bem comum”. (CDSI nº 189 – pg. 114, grifos do original e nossos).

É o exercício da cidadania ativa a que todas e todos somos convocados, diuturnamente.

Fazê-lo atuando em associações de rua, de bairro, engajando-nos, efetivamente, em trabalhos de voluntariado, dos mais variados matizes, para que a exclusão social definhe, a corrupção seja enfraquecida, os valores inerentes à sociedade justa e solidária nos pautem.

Diz o Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“Nesta perspectiva, torna-se imprescindível a exigência de favorecer a participação sobretudo dos menos favorecidos, bem como a alternância dos dirigentes políticos, a fim de evitar que se instaurem privilégios ocultos; é necessária, ademais, uma forte tensão moral para que a gestão da vida pública seja fruto da co-responsabilidade de cada um em relação ao bem comum”. (CDSI nº 189 – pg. 114, grifos nossos).

Sim, a imprescindível “alternância dos dirigentes políticos a fim de evitar que se instaurem privilégios ocultos”.

Eis porque e ratificando o que linhas atrás abordamos na análise sobre “a razão de ser da autoridade política” (CDSI nº 168 – pg. 103), o instituto da reeleição deve ser abolido.

Não ao político profissional!

Não à familiarização da política!

Registro de grande importância procede o Compêndio da Doutrina Social da Igreja nesse tópico alusivo ao Princípio da Participação. É dito:

“Merecem uma preocupada consideração, neste sentido, todas as atitudes que levam o cidadão a formas participativas insuficientes ou incorretas e à generalizada desafeição por tudo o que concerne à esfera da vida social e política: atente-se, por exemplo, para as tentativas dos cidadãos de “negociar” as condições mais vantajosas para si com as instituições, como se estas últimas estivessem a serviço das necessidades egoísticas, e para a práxis de limitar-se à expressão da opção eleitoral, chegando, também, em muitos casos, a abster-se dela”. (CDSI nº 191 – pg. 115, grifos do original e nossos).

Muito apropriado conhecermos duas transcrições do Documento nº 91, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

A primeira transcrição está no nº 34, desse Documento, e perfeitamente ressalta a insuficiência, a tibieza da Democracia representativa para o autêntico viver democrático.

“34. A Democracia Representativa tem seu ponto alto no momento em que a pessoa, transformada em eleitor, aperta a tecla final CONFIRMA, na urna eletrônica. Com isso é finalizada a função do eleitor. A partir daí ele se desfaz de seu ser como agente político e delega àqueles que foram eleitos, a função de agirem em seu nome. Assim sendo, se fizermos da Democracia Representativa a única forma de o povo exercer sua soberania política, então ela é redutora do seu ser político. Elege e vai para casa, já desnudado do seu ser político que foi outorgado a outrem”. (Por uma Reforma do Estado com Participação Democrática – Documentos da CNBB – nº 91 – pg. 22, grifos nossos

A segunda transcrição, que está no nº 48, enfatiza o valor maior da Democracia Participativa:

“48. A ampliação da democracia formal parte das necessidades dos homens e mulheres que almejam ser mais que objeto. A construção da Democracia Participativa parte do pressuposto de que é necessário ultrapassar o individualismo e tomar o rumo da solidariedade que deve, pois, apelar à consciência dos cidadãos, respeitando a sua autonomia e chamando-os a contribuir para a construção do bem comum”. (Por uma Reforma do Estado com Participação Democrática – Documentos da CNBB – nº 91 – pg. 28, grifos nossos).

Chegamos, agora, ao Princípio da Solidariedade.

Apresenta-o o Compêndio da Doutrina Social da Igreja por esse modo:

“O termo solidariedade, amplamente empregado pelo Magistério, exprime em síntese a exigência de reconhecer, no conjunto dos liames que unem os homens e os grupos sociais entre si, o espaço conferido à liberdade humana para prover ao crescimento comum, compartilhado por todos. A aplicação nesta direção se traduz no positivo contributo que não se há de deixar faltar à causa comum e na busca dos pontos de possível acordo, mesmo quando prevalece uma lógica de divisão e fragmentação; na disponibilidade a consumir-se pelo bem do outro, para além de todo individualismo e particularismo”. (CDSI nº194 – pg. 117/118, grifos do original e nossos).

Assim posto: solidariedade é a expressão do amor fraterno.

Sim, só o amor fraterno a todas e a todos disponibiliza o “consumir-se pelo bem do outro, para além de todo individualismo e particularismo”.

Quebra-se com o indiferentismo, que aliena; com a arrogância, que menospreza; com o egocentrismo, que segrega. Denodadamente, há o empenho para se alcançar o consenso, no dissenso; o uno, que é a possibilidade clara da convergência, na divergência, jamais o uniforme, que é a supressão da pluralidade porque a solidariedade – amor fraterno – ultrapassa, superando, “a lógica de divisão e fragmentação”.

Arremata o Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“Jesus de Nazaré faz resplandecer, aos olhos de todos os homens, o nexo entre solidariedade e amor, iluminando todo o seu significado. À luz da fé, a solidariedade tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão, da reconciliação. O próximo, então, não é só um ser humano com os seus direitos e a sua igualdade fundamental em relação a todos os demais; mas torna-se a imagem viva de Deus Pai, resgatada pelo sangue de Jesus Cristo e tornada objeto da ação permanente do Espírito Santo”. (CDSI nº 196 – pg. 119, grifos do original e nossos).

No livro “O Princípio Esquecido”, composto em coletânea de artigos, Piero Coda, no artigo “ Por uma Fundamentação Teológica da Categoria Política da Fraternidade, aborda a fraternidade, dela afirmando:

“1. A fraternidade é uma categoria essencialmente cristã, no sentido de que aprofunda suas raízes no evento de Jesus Cristo e, a partir desse evento, abre caminho na história.

Na realidade, é impressionante a marcada presença de termos como adelphós (irmão), adelphótes (fraternidade), philadelphia (amor fraterno) no Novo Testamento. Chama atenção, de modo especial, que adelphói (irmãos) seja o termo com o qual os próprios discípulos de Cristo se denominam e que o substantivo adelphótes (fraternidade, cf. 1Pd 2, 17; 5, 9) não signifique um ideal a ser conquistado, mas uma realidade alcançada, uma dádiva recebida com a qual a existência e as relações entre os cristãos se identificam.

Em outras palavras, “a fraternidade é a peculiaridade da comunidade cristã, a atuação da novidade realizada por Jesus e, com isso, o fermento a levedar, internamente, a massa de toda a humanidade”. (Livro citado: pg. 77, grifos do original e nossos). Finalizando a Primeira Parte do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, esse Documento faz sobressair a necessária presença de valores fundamentais a motivar nossas atitudes e comportamentos: a verdade, a liberdade, a justiça e o amor.

“O nosso tempo exige uma intensa atividade educativa e um correspondente empenho, por parte de todos, para que a investigação da verdade, não redutível ao conjunto ou a alguma das diversas opiniões, seja promovida em todos os âmbitos, e prevaleça sobre toda tentativa de relativizar-lhe as exigências ou de causar-lhe qualquer tipo de ofensa. É uma questão que incumbe especialmente ao mundo da comunicação pública ao da economia. Neles, o uso descomedido do dinheiro faz com que surjam questões cada vez mais urgentes, que necessariamente reclamam uma necessidade de transparência e honestidade no agir pessoal e social”. (CDSI nº 198 – pg. 120/121, grifos do original e nossos).

Tem plena razão essa assertiva do Compêndio da Doutrina Social da Igreja sobre a verdade.

“Intensa atividade educativa”, que propicie e incentive a análise fundamentada e objetiva dos fatos e acontecimentos, é o antídoto eficaz contra a manipulação das consciências, contra o reducionismo superficial e meramente opinativo ao abordar as questões, contra a indústria das fake news, geradora de todo o tipo de deformação e mentira, cuja resultante reside na falsidade e na mediocridade imperante em vários setores da vida social, notadamente governamentais.

“O uso descomedido do dinheiro”, sim, impera no “mundo da comunicação pública e da economia”.

O Papa Francisco muito bem foca esse tema quando, na Exortação Apostólica “Christus Vivit”, é preciso:

“89. Não se deveria esquecer que no mundo digital estão em jogo enormes interesses econômicos capazes de realizar formas de controle tão sutis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O funcionamento de muitas plataformas, frequentemente, acaba favorecendo o encontro entre pessoas que pensam da mesma maneira, dificultando a confrontação entre as diferenças. Esses circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceitos e ódio. A proliferação das fake news é expressão de uma cultura que perdeu o sentido da verdade e submete os fatos a interesses particulares. A reputação das pessoas está em perigo diante de julgamentos sumários em série”.(Exortação Apostólica “Christus Vivit” – nº 89 – pg. 50, grifos do original e nossos).

A liberdade sobre estampar “ a singularidade de cada pessoa humana” (CDSI nº 200 – pg. 121 – grifos nossos), é direito fundamental porque caminho único a que a mulher e o homem se autocompreendam, se autopossuam, se autodeterminem, assim afastando a massificação manipuladora da pessoa humana.

Todavia, a liberdade jamais pode ser considerada como a exaltação do ego, traduzida no “faço o que quero, quando quero, como quero”.

Não há liberdade que justifique o abuso dela própria.

Eis, a propósito, o ensinamento do Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“Longe de cumprir-se em uma total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça, unem as pessoas. A compreensão da liberdade torna-se profunda e ampla na medida em que é tutelada, também no âmbito social, na totalidade das suas dimensões”. (CDSI nº 199 – pg. 121, grifos do original e nossos).

A justiça também tem a sua compreensão para além da sua concepção meramente legalista, reduzida à observância e cumprimento dos contratos celebrados – pacta sunt servanda -, então expandindo-se para concepção integrada com o amor. Diz o Documento:

“203. A plena verdade sobre o homem permite superar a visão contratualista da justiça, que é visão limitada, e abrir também para a justiça o horizonte da solidariedade e do amor. A justiça sozinha não basta; e pode mesmo chegar a negar-se a si própria, se não se abrir àquela força mais profunda que é o amor. Ao valor da justiça, a doutrina social da Igreja aproxima o da solidariedade, enquanto via privilegiada da paz... A meta da paz, com efeito, será certamente alcançada com a realização da justiça social e internacional; mas contar-se-á também com a prática das virtudes que favorecem a convivência e nos ensinam a viver unidos, a fim de, unidos, construirmos, dando e recebendo, uma sociedade nova e um mundo melhor”. (CDSI nº 203 – pg. 123, grifos do original e nossos).

O amor tudo conclui.

Sem o amor nos absolutizamos, nos fechamos, nos impomos.

O amor nos impele para a construção cotidiana da cultura do encontro em todas as suas dimensões, em todas as suas perspectivas.

Assim, as palavras de encerramento da primeira parte do Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

“207. Nenhuma legislação, nenhum sistema de regras ou de pactos conseguirá persuadir homens e povos a viver na unidade, na fraternidade e na paz; nenhuma argumentação poderá superar o apelo do amor. Somente o amor, na sua qualidade de “forma virtutum”, poderá animar e plasmar o agir social no contexto de um mundo cada vez mais complexo...Nesta perspectiva, o amor se torna amor social e político: o amor social nos leva a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não só individualmente, mas também na dimensão social que as une”. (CDSI nº 207 – pg. 124/125, grifos do original e nossos).

Paz e Bem.



PARA DIALOGAR:

1) Qual é o significado da Doutrina Social da Igreja? Por que é tão necessário conhecê-la e pô-la em prática?

2) A dignidade da pessoa humana preside toda a construção da Doutrina Social da Igreja? Por quê? Quais as consequências concretas extraímos da observância do princípio da dignidade da pessoa humana? (ler e comentar as referências feitas na Cartilha aos nº 106; 125; 132 e 147 do CDSI, respectivamente a fls. 6; 7; 8 e 9).

3) Como se apresenta o princípio do bem comum no CDSI?

4) Qual é a razão de ser da autoridade política?

5) Como é considerado o princípio da destinação universal dos bens? (ler e comentar as referências feitas na Cartilha aos nº 172; 176 e 177, do CDSI, respectivamente a fls. 11 e 12).

6) Na visão do CDSI, e presente o princípio da subsidiariedade, quem tem primazia: a sociedade civil ou o aparato estatal? (ler e comentar as referências feitas nos nº 185 e 187 do CDSI, respectivamente a fls. 14 e 15).

7) O princípio da participação – leia-se nº 189 e 191 do CDSI, respectivamente a fls. 15 e 16 – torna concreto o regime democrático. Como estabelecermos formas vivas e perenes de participação em nossas famílias, em nossas comunidades paroquiais, de bairro e organizações associativas?

8) Por que o nosso tempo exige “uma intensa atividade educativa”? (ler e comentar o nº 198 do CDSI a fls. 19).

9) Por que as fake news são tão nocivas? (ler e comentar o nº 89 da Exortação Apostólica Christus Vivit na Cartilha a fls. 19/20).

10) Por que o amor tudo conclui?

11) Diante das propostas da Doutrina Social da Igreja, o que nossa comunidade poderá fazer para concretizar os elementos refletidos em nosso meio, seja em nossa casa; em nossa família; em nossas comunidades paroquiais, de bairro; em organizações associativas; etc.?

Paz e Bem.