Deparo-me com palavras do Papa
Francisco, ditas por ocasião do Angelus de 22 de maio de 2020.
Ei-las:
Os primeiros cristãos, os teólogos dos primeiros séculos
disseram que a comunidade dos cristãos, ou seja, a Igreja é o mistério da lua, porque dava luz, mas
não tinha luz própria, tinha a luz que vinha de Cristo. Também nós devemos ser mistério da lua: dar a luz recebida do
sol, que é o Cristo Senhor”.(grifos nossos).
Nos tempos presentes há muita escuridão.
Tudo é tão apressado, tão rápido, tão aceleradamente
digitado.
Na vertigem da
velocidade o ser humano celebra seu encantamento com a tecnologia, a sensação
de que limites não há: nada mais lhe escapa, tudo lhe é possível realizar.
Oportuna e pertinente,
nesse passo, a advertência do Papa Francisco, coerente com ensinamento do Papa
Bento XVI:
“O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável: o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se de que “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza”. Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (Carta Encíclica Laudato Si – nº6 – pg. 7- Edições Paulinas).
As tragédias de todos os matizes disso provém.
A liberdade não é
criação humana: “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria.
O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também
natureza”.
Porque é natureza, o
homem insere-se em convívio porque a natureza é o espaço aberto ao contínuo
conviver entre todos os seres e com o próprio Deus. É a nossa casa comum. E a
casa, porque comum, é a clara constatação de que somos seres relacionais, por
isso que interligados, interdependentes.
Aliás, o Deus-Amor é
pura relação posta na pericorese trinitária. A trindade expressa, vivamente,
que o Deus-Amor não é solidão, mas comunhão do Pai e do Filho no Espírito
Santo.
Todo amor é êxtase. Não
se basta a si próprio. Não. Necessita sair de si – êxtase -, oferecer-se, encontrar-se. Nesse sentido podemos dizer
que Jesus Cristo é o êxtase de Deus-Pai para o encontro conosco, suas amadas
criaturas.
O filósofo Emmanuel
Mounier, no seu livro O Personalismo, elabora perfeita síntese sobre o que é
ser pessoa.
“A pessoa é uma interioridade que tem necessidade de uma
exterioridade. A palavra existir indica, pelo seu prefixo, que ser é expandir-se,
exprimir-se”. (O Personalismo – pg. 66 – Centauro Editora).
Bem adverte o Papa Francisco:
“105. O
individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma
dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a
humanidade. Nem pode preservar-nos dos tantos males que se tornam cada vez mais
globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude.
Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar a rédea solta às próprias ambições como
se acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem
comum”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 105 – pg. 59 – Edições CNBB).
É vital mudança de rumo
na compreensão de nossa existência.
Há uma palavra de
constante presença no Novo Testamento, como pontua, em artigo escrito, Piero
Coda, palavra grega – adelphós -, ou
seja, irmão, que os cristãos fazem
viver porque “não significa um ideal a ser conquistado, mas uma realidade
alcançada, uma dádiva recebida com a qual a existência e as relações entre os
cristãos se identificam”. (Piero Coda: ”Por uma fundamentação teológica da
categoria política da fraternidade”, no livro “O Princípio Esquecido” – pg.
77).
O princípio esquecido é o da fraternidade.
Como revivê-lo?
Responde o Papa
Francisco:
“A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que
pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, “em
grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das
nossas famílias, das nossas sociedades, do nosso povo”. Nessa tarefa, cada um é
capaz “de pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de onipotência,
à vista concreta dos mais frágeis(...). O serviço fixa sempre o rosto do irmão,
toca sua carne, sente sua proximidade e, em alguns casos, até padece com ela e
procura a promoção do irmão. Por isso, o
serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas”.
(Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 115 – pg. 63 – edições CNBB – grifos
nossos).
E prossegue:
“Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada, diria que
algumas vezes a transformamos em um palavrão, não se pode dizer; mas uma
palavra é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar
e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação
dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da
pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra, a casa, a negação dos
direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do
dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma
forma de fazer história e é isso que os
movimentos populares fazem. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 116 – pg.
64 – edições CNBB – grifos nossos).
Se cada uma, se cada um,
de nós, em missão de voluntariado ou no desempenho de nossa atividade laboral,
abrisse espaço para realizar, concreta e objetivamente, ação social, não importa a dimensão que tenha, mas que seja
contínua, certamente a solidariedade, assim presente, torna-nos: “Mistério da
Lua”.
Paz e Bem.
3 comentários:
Que beleza de texto, Claudio.
Maravilhoso como sempre!
Sensacional! Obrigada, professor.
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