Iniciando meus estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, no ano de 1965, ouvi falar do Professor Pertence, assistente de ensino, pelos estudantes veteranos celebrado como excelente professor.
Não pude usufruir de seus
conhecimentos jurídicos.
Demitira-se.
A razão?
Transcrevo poucos, mas sintomáticos
parágrafos, redigidos pelo Professor Roberto Salmeron no livro que escreveu: “A
universidade interrompida: Brasília 1964-1965”:
“Em outubro de 1965, um ano e meio depois das primeiras
expulsões, um outro reitor foi designado pelo presidente da República, também
por injunções políticas, os docentes sendo colocados diante de um fato
consumado. Recém-chegado, em função havia cinco semanas apenas e ignorando
tudo, realmente tudo sobre a universidade, chamou o Exército e a Polícia
Militar para novamente a invadirem. E demitiu, arbitrariamente, mais dezesseis
professores, sem acusação, e sem possibilidade de defesa, como tinha feito o
seu antecessor. O pretexto, apresentado a
posteriori, foi o de que eram indisciplinados, e indisciplina deveria ser
considerada um aspecto da subversão”. (livro citado – pg. 25/26).
“Essa demissão coletiva, caso único na história de
universidades no mundo, foi espontânea, não foi programada, nem dirigida do
exterior, como alguns ridiculamente pretenderam. Devido à determinação e à
união dos docentes houve quem duvidasse de sua espontaneidade. Por que tal
atitude de 223 pessoas? Que fatos levaram tantos, conscientes e responsáveis, a
se convencer de que não era mais possível continuar trabalhando nas condições
que lhe eram impostas? A situação podia ser resumida numa frase em termos simples:
seria possível manter a dignidade de cidadãos e de professores construindo uma
universidade cujo corpo docente deveria estar sujeito às arbitrariedades de um
reitor e de um ministro da Educação que julgavam normal receber instruções do
Serviço Nacional de Informações, do Serviço Secreto do Exército e de outros
serviços policiais? O ministro da Educação dizendo em entrevistas que educação
é assunto de segurança nacional? (livro citado – pg. 27/28).
Anos depois, o advogado,
Dr. Pertence, convida-me para conversa em seu escritório de advocacia. Vai
lançar-se à presidência do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados, em
Brasília, e quer constituir realidade plural, que congregasse conselheiros
advindos da própria advocacia, particular e pública; do Ministério Público; do
magistério superior. Ali estava eu como professor – lecionava Direito
Processual Penal, e o fiz por vários anos – e como membro do Ministério Público
federal.
Aceitei.
Aproximamo-nos, então,
em frutuosas conversas e tantas caminhadas a visitar eleitores.
A eleição foi perdida,
mas a amizade nascia.
A ditadura militar
agonizava.
Tempos de
redemocratização.
Importante, então,
definir pessoa capaz de assumir a liderança do Ministério Público federal – o
Procurador-Geral da República – justamente para que essa instituição não mais
fosse subserviente, servil, aos caprichos do ditador de plantão, mas, e como
“voz da Sociedade brasileira diante do Poder Judiciário” – expressão que cunhei
e pela qual sempre me pautei – bem cumprisse com a sua vocação de defender a
Democracia e a cidadania em todas as suas latitudes.
Luiz Carlos Sigmaringa
Seixas e eu, coadjuvando-o porque Luiz Carlos tinha amplo espaço de articulação
político-partidária, pusemo-nos a defender e a trabalhar o nome de Pertence
para essa missão.
Assumindo o cargo, ele
me convida para a chefia de gabinete com o intuito de estabelecer contínua
interlocução com as/os colegas de todo o Brasil e cria a Secretaria de
Coordenação de Defesa dos Direitos Individuais e Interesses Difusos: a SECODID,
confiando-me esse trabalho.
O Ministério Público
federal, a partir de então, despe-se e despede-se da condição de advogado do
Poder Executivo, de advogado do general ditador de plantão, na ocasião, e passa
a atuar, concretamente, principalmente valendo-se os seus membros do
instrumento processual da ação civil pública, acionada em defesa das minorias,
do meio-ambiente, do patrimônio cultural e histórico, da saúde pública.
Vocaciona-se, essencial
e fundamentalmente, à defesa da Sociedade brasileira, comprometendo-se com a
contínua afirmação do Estado Democrático de Direito.
Sob a ótica criminal,
passa a interagir com as instâncias investigativas do Estado – polícia federal,
fiscalização da receita federal, da previdência social do banco central, dentre
outras – para que a persecução criminal se faça em escala ampla, sem embates
corporativos, alcançando os autores dos chamados “crimes do colarinho branco”:
os “tubarões”.
José Paulo Sepúlveda
Pertence é o condutor firme na diuturna construção dessa nova realidade. É o
artífice, dada a sua competência e respeitabilidade, do verdadeiro significado
do que é ser Ministério Público, sua primeira opção profissional, exercida
aqui, em Brasília, nos primórdios de 1960, da qual fora compulsoriamente
afastado pelo arbítrio autoritário, instalado com o golpe militar de 1964.
Certo é, sem a menor
dúvida, que não fosse o empenho e a dedicação de tantas e de tantos membros do
Ministério Público federal no assumir e vivenciar, diuturnamente, essa missão
constitucional, conferida à instituição na redemocratização de nosso Brasil, e
nada teria acontecido, até porque as resistências internas se faziam sentir à
manutenção do status quo.
A verdadeira liderança
nunca é solitária.
O verdadeiro líder é
aquele que, por seu testemunho profissional, propõe, estimula, agrega, caminha,
então, junto e adiante.
Zé Paulo assim o foi.
Zé Paulo porque, para
mim, nesse momento não era mais o Dr. Pertence da primeira conversa no
escritório de advocacia.
O conhecimento mútuo
cresceu. A amizade profunda consolidou-se. Irmanados, porque eu o via como meu
irmão mais velho, e ele, na sua timidez e discrição, concedia-me esse
sentimento de fraternidade. Irmanados, trilhamos os bons caminhos.
Depois, minha classe
conferiu-me o primeiro lugar na lista tríplice para exercer o cargo de
Procurador-Geral da República e o Presidente Lula acatou esse desejo da classe.
Cumpri o biênio
2003/2005.
Zé Paulo, decano do
Supremo Tribunal Federal, e nós, como que lado a lado, nas sessões plenárias do
Colegiado.
Aposentei-me dali a
poucos anos, e espaçamos nossos encontros.
Neste ano, diante da
barbaridade acontecida no 8 de janeiro, ele aderiu e fez questão de subscrever
Manifesto, que a quase totalidade de ex-Procuradores-Gerais da República deu a
público para a Sociedade brasileira.
Pelo que esse Documento
tem de significado e compromisso, permito-me transcrevê-lo, integralmente, em
anexo, ao presente artigo.
Também o faço como
homenagem póstuma minha a Zé Paulo por tudo o que com ele aprendi.
Em maio passado, senti
necessidade de estar com ele, pessoalmente.
Visitei-o em seu
domicílio.
Algumas poucas, mas
maravilhosas horas de conversas, e o vinho tinto, celebrando-as.
A amizade é isso.
Ser impelido para estar
junto como irmãos. Então, reviver o passado, que se faz eterno presente, sem
lugar para o futuro porque a amizade, como tantas outras expressões do amor, é:
a amizade é.
Eis porque diz São Paulo
em carta à comunidade de Corinto, e em palavras eternas a todas e a todos nós:
“O amor jamais acabará”.
(1 Cor. 13, 8 – Bíblia Sagrada – Tradução da CNBB).
Paz e Bem.
MANIFESTO À SOCIEDADE
BRASILEIRA
Nós, que exercemos o cargo de
Procurador-Geral da República e, por imperativo constitucional, nos
comprometemos com a defesa da Democracia, assim nos manifestamos:
O binômio educação-saúde foi
esfacelado no quadriênio governamental recém findo.
A formação de sociedade humanista foi
menosprezada ante a estupidez armamentista, o isolamento mundial, a mais
completa ausência de ideias e condutas sólidas e bem estruturadas em adequada
fundamentação, objetivando a proteção do clima e do meio ambiente e a promoção
integral da pessoa humana no amplo acesso de todas e de todos, brasileiras e
brasileiros, aos bens culturais e materiais.
Os fatos, ontem consumados, fielmente
retratam o que se vem de afirmar.
Gravíssimos porque atacam,
contundentemente, a Democracia.
Na expressão mais lídima do Estado
Democrático de Direito, que tais fatos sejam investigados e processados, civil,
criminal e administrativamente, e que sejam responsabilizados seus autores, quer
no plano da execução das condutas, quer no plano do financiamento à dita
execução, quer no plano dos mandantes que, por ação ou omissão, estimularam a
execução dessas condutas.
Brasília, 9 de janeiro de 2023.
Raquel Elias Ferreira Dodge
Antônio Fernando Barros e Silva de
Souza
Claudio Lemos Fonteles
José Paulo Sepulveda Pertence
Roberto Monteiro Gurgel
Rodrigo Janot Monteiro de Barros