domingo, 28 de maio de 2023

MISTÉRIO DA LUA

 

                              

 

Deparo-me com palavras do Papa Francisco, ditas por ocasião do Angelus de 22 de maio de 2020.

Ei-las:

Os primeiros cristãos, os teólogos dos primeiros séculos disseram que a comunidade dos cristãos, ou seja, a Igreja é o mistério da lua, porque dava luz, mas não tinha luz própria, tinha a luz que vinha de Cristo. Também nós devemos ser mistério da lua: dar a luz recebida do sol, que é o Cristo Senhor”.(grifos nossos).

Nos tempos presentes há muita escuridão.

Tudo é tão apressado, tão rápido, tão aceleradamente digitado.

Na vertigem da velocidade o ser humano celebra seu encantamento com a tecnologia, a sensação de que limites não há: nada mais lhe escapa, tudo lhe é possível realizar.

Oportuna e pertinente, nesse passo, a advertência do Papa Francisco, coerente com ensinamento do Papa Bento XVI:

“O Papa Bento XVI propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável: o próprio ambiente social tem as suas chagas. Mas, fundamentalmente, todas elas ficam a dever ao mesmo mal, isto é, à ideia de que não existem verdades indiscutíveis a guiar a nossa vida, pelo que a liberdade humana não tem limites. Esquece-se de que “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza”. Com paterna solicitude, convidou-nos a reconhecer que a criação resulta comprometida “onde nós mesmos somos a última instância, onde o conjunto é simplesmente nossa propriedade e onde o consumimos somente para nós mesmos. E o desperdício da criação começa onde já não reconhecemos qualquer instância acima de nós, mas vemo-nos unicamente a nós mesmos”. (Carta Encíclica Laudato Si – nº6 – pg. 7- Edições Paulinas).

As tragédias de todos os matizes disso provém.

A liberdade não é criação humana: “o homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza”.

Porque é natureza, o homem insere-se em convívio porque a natureza é o espaço aberto ao contínuo conviver entre todos os seres e com o próprio Deus. É a nossa casa comum. E a casa, porque comum, é a clara constatação de que somos seres relacionais, por isso que interligados, interdependentes.

Aliás, o Deus-Amor é pura relação posta na pericorese trinitária. A trindade expressa, vivamente, que o Deus-Amor não é solidão, mas comunhão do Pai e do Filho no Espírito Santo.

Todo amor é êxtase. Não se basta a si próprio. Não. Necessita sair de si – êxtase -, oferecer-se, encontrar-se. Nesse sentido podemos dizer que Jesus Cristo é o êxtase de Deus-Pai para o encontro conosco, suas amadas criaturas.

O filósofo Emmanuel Mounier, no seu livro O Personalismo, elabora perfeita síntese sobre o que é ser pessoa.

“A pessoa é uma interioridade que tem necessidade de uma exterioridade. A palavra existir indica, pelo seu prefixo, que ser é expandir-se, exprimir-se”. (O Personalismo – pg. 66 – Centauro Editora).

Bem adverte o Papa Francisco:

105. O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode preservar-nos dos tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar a rédea solta às próprias ambições como se acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 105 – pg. 59 – Edições CNBB).

É vital mudança de rumo na compreensão de nossa existência.

Há uma palavra de constante presença no Novo Testamento, como pontua, em artigo escrito, Piero Coda, palavra grega – adelphós -, ou seja, irmão, que os cristãos fazem viver porque “não significa um ideal a ser conquistado, mas uma realidade alcançada, uma dádiva recebida com a qual a existência e as relações entre os cristãos se identificam”. (Piero Coda: ”Por uma fundamentação teológica da categoria política da fraternidade”, no livro “O Princípio Esquecido” – pg. 77).

O princípio esquecido é o da fraternidade.

Como revivê-lo?

Responde o Papa Francisco:

“A solidariedade manifesta-se concretamente no serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço é, “em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar dos frágeis das nossas famílias, das nossas sociedades, do nosso povo”. Nessa tarefa, cada um é capaz “de pôr de lado as suas exigências, expectativas, desejos de onipotência, à vista concreta dos mais frágeis(...). O serviço fixa sempre o rosto do irmão, toca sua carne, sente sua proximidade e, em alguns casos, até padece com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas”. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 115 – pg. 63 – edições CNBB – grifos nossos).

E prossegue:

“Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada, diria que algumas vezes a transformamos em um palavrão, não se pode dizer; mas uma palavra é muito mais do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, a terra, a casa, a negação dos direitos sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro (...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de fazer história e é isso que os movimentos populares fazem. (Carta Encíclica Fratelli Tutti – nº 116 – pg. 64 – edições CNBB – grifos nossos).

Se cada uma, se cada um, de nós, em missão de voluntariado ou no desempenho de nossa atividade laboral, abrisse espaço para realizar, concreta e objetivamente, ação social, não importa a dimensão que tenha, mas que seja contínua, certamente a solidariedade, assim presente, torna-nos: “Mistério da Lua”.

 

                                                Paz e Bem.