domingo, 20 de setembro de 2020

"LEMBRA-TE DE MIM"

 


 

“Um dos malfeitores suspensos à cruz insultava Jesus, dizendo: Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós. Mas o outro, tomando a palavra, o repreendia. Nem sequer temes a Deus, estando na mesma condenação? Quanto a nós é de justiça; estamos pagando por nossos atos, mas Ele não fez nenhum mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino”. (Lucas 23, 39-42. Bíblia de Jerusalém - edições Paulinas – 1985).

 

Durante bom tempo esse texto me intrigou.

Pensava: bastava uma declaração de mudança de vida e ´pronto, tem-se a salvação.

Ainda hoje, muitas e muitos, focando o arrependimento em si, a tal conduta atribuem o incontinenti efeito salvífico.

Não. Não é tão simples assim.

Importa, para a adequada compreensão do ensinamento de Jesus, presente na transcrição evangélica acima, que se examine bem a conduta de adesão a Sua pessoa e a Seus atos.

Primeiro Dimas – assim vamos chamar o que se converte - não se põe em atitude omissiva, de mero espectador ante os desafios verbais de seu camarada, na delinquência, à pessoa de Jesus.

Atalha seu camarada e o repreende: “...tomando a palavra, o repreendia”.

Depois, reconhece positivamente que a pena que receberam “é de justiça” pela vida delituosa que sempre levaram.

Aqui surge dado central.

Dimas tem a coragem de repudiar, tanto proclamando a seu camarada de tantos anos, o grande erro na forma como se conduziram em vida.

Nós, na imensa maioria de mulheres e homens, no nosso existir, muito dificilmente temos tanta coragem.

Escudamo-nos sempre em alguém, ou em algo, ou em ambas as situações, para nos justificarmos.

A esse propósito, e valendo-me do precioso ensinamento do Compêndio da Doutrina Social da Igreja sobre a universalidade do pecado, reproduzo-o como posto em tal Documento:

 

120. A doutrina do pecado original, que ensina a universalidade do pecado tem uma importância fundamental... Esta doutrina induz o homem a não permanecer na culpa e a não tomá-la com leviandade, buscando continuamente bodes expiatórios nos outros homens e justificações no ambiente, na hereditariedade, nas instituições, nas estruturas e nas relações. Trata-se de um ensinamento que desmascara tais engodos. A doutrina da universalidade do pecado, todavia, não deve ser desligada da consciência da universalidade da salvação em Jesus Cristo. Se dela isolada, gera uma falsa angústia do pecado e uma consideração pessimista do mundo e da vida, que induz a desprezar as realizações culturais e civis dos homens”. (CDSI nº 120 – pg.78 - edições Paulinas – 1985).

 

Estamos em tempos de manipulação das consciências. Bem elaboradas técnicas de persuasão midiática e em redes sociais conduzem-nos, ardilosamente, dando-nos a enganosa sensação de exercermos a nossa liberdade, fazendo-o, sem limites, em nome da Democracia.

Mais uma vez, o magistério do Compêndio da Doutrina Social da Igreja:

 

“Não se deve restringir o significado da liberdade, considerando-a numa perspectiva puramente individualista, reduzindo-a ao exercício arbitrário e incontrolado da própria autonomia pessoal: Longe de cumprir-se em uma total autonomia do eu e na ausência de relações, a liberdade só existe verdadeiramente quando laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça unem as pessoas”. (CDSI nº 199 - edições Paulinas – 1985).

 

Tornemos a Dimas.

O que fez?

Livre, uniu-se em “laços recíprocos, regidos pela verdade e pela justiça” a Jesus porque Ele, Jesus: “não fez nenhum mal”.

Ainda mais, em sua frase final - “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino” -, nada barganha, nada cobra. Simplesmente, e com toda a humildade, pede que Jesus dele se lembre: é o bastante.

Jesus dele lembrar-se é tornar eternamente presente - “quando vieres com tu reino” - o passado desfeito eis porque Jesus assim conclui o diálogo: “Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no Paraíso”.

 

                                        Paz e Bem.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

100.000 MORTES

   

 

“Lamento todas as mortes. Tá chegando em 100 mil talvez  hoje..., mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se  safar disso aí”. (Correio Braziliense de 9 de agosto – pg. 18). 

Assim, o presidente Jair Bolsonaro reage à impressionante cifra de irmãs e irmãos brasileiros mortos na pandemia. Número que continua a subir. 

Nenhuma atitude real; nenhum gesto concreto; nenhum pronunciamento a nós, brasileiras e brasileiros, manifestando sua dor, sua solidariedade, seu empenho no estancar tamanho absurdo. 

Mero e apático lamento, solto ao vento e, praticamente 5 meses após o início da pandemia, ter o desplante de dizer “vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar disso aí”. (grifei) 

Ainda o presidente Jair Bolsonaro está “a buscar uma maneira de se safar disso aí”. 

Absoluta ausência de liderança, de protagonismo, que se quer e se espera de verdadeiro líder de uma Nação em situação de tamanha calamidade pública. 

Nada. 

O ministro da Saúde é interino. Não se conhece programa algum de concreto combate à pandemia. Não se presta contas à Nação. 

Tão desastrosas condutas do presidente da República Jair Bolsonaro - chega a correr atrás de uma ema, empunhando caixa de hidroxicloroquina, nos jardins do Palácio da Alvorada – significam a reiteração de sua mais completa irresponsabilidade e despreparo para o cargo que exerce. 

No acontecer da pandemia, qualificou-a de “gripezinha; resfriadinho; histeria”. 

Em 20 de abril, indagado sobre o número de mortes, já expressivo, diz: “Ô cara, quem fala de... Eu não sou coveiro, tá certo? 

Uma semana depois, crescendo o número de mortos, diz: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias mas não faço milagres”. 

Completa insensatez. 

Como insensato é quando, buscando livrar-se de sua óbvia responsabilidade na condução de política governamental para enfrentar tamanha crise na saúde pública, quer transferir a governadores e prefeitos o ônus do que está a acontecer. 

O verdadeiro líder, em quadro de crise nacional a séria e gravemente afetar a saúde de todas as brasileiras e de todos os brasileiros, haveria de promover, chamando a si, estimulando e perseverando, ação conjunta com todos os governadores e prefeitos, pouco importando a filiação político-partidária dos envolvidos. 

Como bem dizem os Bispos católicos brasileiros na Carta ao Povo de Deus: 

“3. É nesse horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos, ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor. 

4. O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma tempestade perfeita que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança. 

5. Esse cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exigem de suas instituições, líderes, e organizações civis muito mais que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença”. (Carta ao Povo de Deus – itens 3/5, grifo do original). 

A postura do presidente Jair Bolsonaro é de brutal insensibilidade; frieza extrema; absoluto desprezo pelo ser fraterno e misericordioso. 

Quão longe ele está, digo mesmo, quão divorciado ele está de palavras tão significativas e plenas de sentido do Papa Francisco, a propósito da misericórdia como nosso compromisso de vida: 

“Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para conosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível, palpável. Aliás, o amor nunca poderia ser uma palavra abstrata. Por sua própria natureza, é vida concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na atividade de todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também a ser misericordiosos uns para com os outros”. (Bula Misericordiae Vultus da Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia). 

100.000 mortos, e tantos outros que estão a morrer nessa cornucópia macabra de números, não podem ser, insensivelmente, deletados. 

A cidadania clama porque seja dada resposta “para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”.   

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O PAPA FRANCISCO E AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS ( III )

O terceiro tópico da Mensagem toca no drama pungente do tempo presente. 

Vamos ler, portanto, o que nos diz o Papa Francisco: 

“Se comeres, tornar-te-ás como Deus” (cf. Gn 3, 4): essa tentação da serpente introduz, na trama da história, um nó difícil de desfazer. “Se possuíres..., tornar-te-ás..., conseguirás...”, sussurra ainda hoje a quem se utiliza do chamado storytelling para fins instrumentais. Quantas histórias nos narcotizam, convencendo-nos de que, para ser felizes, precisamos continuamente ter, possuir, consumir. 

Quase não nos damos conta de quão ávidos nos tornamos de bisbilhotices e intrigas, de quanta violência e falsidade consumimos. Frequentemente, nos teares da comunicação em vez de narrações construtivas, que solidificam os laços sociais e o tecido cultural, produzem-se histórias devastadoras e provocatórias, que corroem e rompem os fios frágeis da convivência. Quando se misturam informações não verificadas, se repetem discursos banais e falsamente persuasivos, percutem com proclamações de ódio, está-se não a tecer a história humana, mas a despojar o homem de sua dignidade.” (grifos do original e nossos). 

Ser como Deus, ou eliminar-se Deus, para ser por si só no esplendor do que se pode possuir, conseguir, alcançar, consumir, incessantemente. 

Aí está a pandemia que nos força ao isolamento, ao recolhimento, ao mergulho em si para que nos descubramos como necessitados, e não seres que se bastam a si mesmos, e por si mesmos. 

Isso, nós não queremos reconhecer. 

Mergulhar em si para conhecer-se, verdadeiramente, para tantos, é total descalabro. 

Importa mantermo-nos girando, girando, numa roda alienante, alucinada, entorpecida por informações superficiais e aos borbotões, todas manipuladoras e tantas mentirosas. Muito a propósito, sublinhemos trecho da transcrição retro: 

“Quantas histórias nos narcotizam, convencendo-nos de que para ser felizes precisamos continuamente de ter, possuir, consumir. Quase não nos damos conta de quão ávidos nos tornamos de bisbilhotices e intrigas, de quanta violência e falsidade consumimos”. (grifos nossos). 

Eis o tempo das fake news. 

A invasão tecnológica que nos a abarrota. 

Distanciamo-nos uns dos outros. Não há mais convívio. E, se acontece, faz-se em rito de conveniência e superficialidade. 

Debruçados e fixados no que não para de surgir pela ação dos dedos nervosos sobre as teclas dos smartphones e dos computadores, tragamos, embebedados, a avalanche de notícias. Peões girando em torno de si mesmos. 

Esse estado das coisas, em outra passagem, agora haurida na Exortação Apostólica Christus Vivit, “endereçada aos jovens e a todo o povo de Deus, bem o analisa o Papa Francisco: 

“89. Não se deveria esquecer que no mundo digital estão em jogo enormes interesses econômicos, capazes de realizar formas de controle tão sutis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O funcionamento de muitas plataformas frequentemente acaba favorecendo o encontro entre as pessoas que pensam da mesma maneira, dificultando a confrontação entre as diferenças. Esses circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e notícias falsas, fomentando preconceito e ódio. A proliferação das fake news é expressão de uma cultura que perdeu o sentido da verdade e submete os fatos a interesses particulares. A reputação das pessoas está em perigo diante de julgamentos sumários em série. O fenômeno também afeta a Igreja e seus pastores. ( Christus Vivit - nº 86 – pg. 50, grifos nossos). 

Claro que não se está a lançar anátema à tecnologia. 

Há, sem dúvida, descobertas de valia nesse âmbito. 

Ocorre que a tecnologia assim como a economia são realidades humanas instrumentais, jamais finalísticas. 

Apresentam-se como meios que tanto mais serão eficazes quanto mais promovem a acolhida, a afirmação e o crescimento pessoal e comunitário dos excluídos. 

É imperativo que estabeleçamos formas inclusivas de viver. 

Todas e todos temos o pleno direito de participar do banquete da vida, desde que a todas e a todos se garanta o desenvolvimento das aptidões com que o Deus-Amor nos agracia. Para isso, vital que o binômio educação-saúde seja priorizado. O mais vem por natural acréscimo em sociedade que, por esse modo, se apresenta como de oportunidades sempre abertas a todas e a todos. 

Ainda, uma vez mais as lúcidas palavras do Papa Francisco no derradeiro parágrafo do terceiro tópico, que estamos a analisar. 

“Numa época em que se revela cada vez mais sofisticada a falsificação, atingindo níveis exponenciais (o deepfake), precisamos de sapiência para patrocinar e criar narrações belas, verdadeiras e boas. Necessitamos de coragem para rejeitar as falsas e depravadas. Precisamos de paciência e discernimento para descobrirmos histórias que nos ajudem a não perder o fio, no meio das lacerações de hoje; histórias que tragam à luz a verdade daquilo que somos, mesmo na heroicidade do dia a dia”.  

O sadio confronto de posições políticas claras e objetivas nutre substancialmente a Democracia. 

 Não podemos nos deixar arrastar, nas posições políticas que assumimos, por preconceitos, por ódios, por beligerância. 

O ser político não é o ser guerreiro. 

O ser político é o ser do diálogo e da construção plural. 

Não deve haver lugar para arrivistas na política. 

Não deve haver lugar para medíocres e aventureiros, que se motivam à ação política unicamente para se locupletarem materialmente. 

A ação política há de expressar o empenho pelo bem comum. 

Que a advertência do Papa Francisco, aqui já transcrita, como posta na Exortação Apostólica Christus Vivit, seja perenizada em nossos corações para que não percamos o protagonismo, sempre consciente, na real edificação da Democracia. 

89. Não se deveria esquecer que no mundo digital estão em jogo enormes interesses econômicos, capazes de realizar formas de controle tão sutis como invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático”.