Posicionamentos dos que juridicamente
viabilizam a lei de anistia – Lei nº6683/1979 – centram-se, em causa subjacente
a toda a linha de argumentação desenvolvida, no ter-se constituído dito diploma
legal em fórmula adequada ao apaziguamento da sociedade brasileira, e que sua
desconstituição – até porque a revelar pacto político selado há tantos anos e
importante à sua época – óbice encontraria no exaurimento do texto normativo,
assim consolidado, e também na proibição da retroatividade penal.
No pórtico de apresentação da
Constituição federal de 1988, o Presidente da Assembléia Nacional Constituinte,
Ulysses Guimarães, disse-a:
“É a Constituição Coragem.
Andou, imaginou, inovou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou
partido dos que se salvam pela lei.
A Constituição durará com a Democracia e só com a Democracia
sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.”
Pois a Constituição Coragem, no artigo 5º, inciso XLIV, é
textual:
XLIV – “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação
de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático”.
Esse preceito
constitucional é claro: todas as condutas praticadas por grupos armados de
civis ou militares que afrontem a ordem constitucional e o Estado Democrático
são crimes, observada a prévia definição das mesmas na legislação penal,
codificada ou não, em vigor ao tempo de sua prática, na exata observância do
disposto no inciso XXXIX, do mesmo artigo 5º e, quando cometidas no contexto
desse cenário – “contra a ordem constitucional e o Estado Democrático –
tornam-se inafiançáveis e imprescritíveis.
Assim, de nenhuma valia
dizer-se que a lei de anistia cristalizou pacto político, então exaurido em
seus efeitos e, portanto, imutável.
É injurídica tal
colocação.
A Constituição Federal
de 1988, a Constituição Coragem, não recepciona a lei de anistia. Não
recepciona a lei de anistia porque se revelando a Carta Magna como a expressão jurídica
suprema empenhadamente motivada e calcada na afirmação e preservação da
Democracia, por certo e por óbvio não poderia incorporar, validando, texto de
lei ordinária, que frontalmente desrespeita esse seu maior propósito.
É de se considerar que
quando a própria Constituição federal quer conceder eficácia contida a
preceitos seus vale-se ora da expressão “nos termos da lei”, ora da expressão
“a lei”, como exatamente fez nos dois incisos anteriores – XLII e XLIII – a
tratar da inafiançabilidade e da imprescritibilidade do crime de racismo –
inciso XLII – e da inafiançabilidade e insusceptibilidade da graça ou anistia a
prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
terrorismo e os definidos como crimes hediondos – inciso XLIII -.
Ora, no inciso XLIV o
texto constitucional é direto e incisivo: constituem-se em crime inafiançável e
imprescritível as condutas criminosas, já presentes na legislação penal à época
em que foram realizadas, sempre que perpetradas por grupos armados de civis e
militares e assumidas contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Esse inciso, por manifesto, não pode ser interpretado como a exigir seja
inserido no Código Penal tipo, cujo “nomen iuris” seria: “agir contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático”. Aliás, a vastidão e generalidade dessa
definição comprometeriam, sem qualquer margem para a dúvida, a exigência do princípio
da tipicidade criminal estrita, corolário imprescindível do processo judicial
democrático.
É de se louvar, por tudo
quanto até aqui se disse, o comportamento de Procuradoras e Procuradores da
República e do próprio Procurador geral da República, Dr. Rodrigo Janot
Monteiro de Barros, posicionando-se claramente sobre a imprescritibilidade e a
não incidência da lei de anistia sobre as condutas criminosas executadas pelos
agentes públicos do Estado ditatorial, até porque o artigo 127 da Constituição
federal diz ser dever do Ministério Público, como instituição permanente da
Sociedade brasileira, defender: “a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses
sociais e individuais indisponíveis.”
A Constituição Coragem
assim o é porque não teme arrostar o passado para não permitir que jamais se
faça presente; porque não teme iluminar continuadamente a escuridão, cúmplice
do silêncio, para não permitir que jamais se olvide e, então, se conheça, em
toda a sua extensão, observando-se sempre os ditames do devido processo legal,
o grau de responsabilidade dos civis e militares, que agiram, criminosamente,
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático porque tais condutas são
inafiançáveis, tais condutas são imprescritíveis.
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