sábado, 5 de maio de 2012

Estado laico

                                             
            Não é de hoje, e com persistência, as grandes empresas jornalísticas de nosso País, sempre que atingem amplo espaço público questões pertinentes à defesa da vida, ou à reflexão sobre a família, vociferam, dogmáticas, em defesa do que chamam: o Estado laico

            Querem estabelecer que a República laica não tolera o tratamento de assuntos religiosos, confinados, então, à consciência individual de cada uma das pessoas, e inaceitáveis à difusão pública.

            Isso nada tem a ver com República laica. Conduz-nos a gritante erro essa imposição do pensar, “politicamente correto”, a que nos submete o stablishment midiático.

            O consagrado Professor de Direito Constitucional José Gomes Canotilho, em sua obra Direito Constitucional – 4ª edição – a partir do estudo dos parâmetros republicanos da Constituição portuguesa de 1911, que encerrou o sistema monárquico, é correto no ensinar que:


2. República laica
Se no tocante à estrutura organizatória da República a Constituição de 1911 não fez senão recolher as idéias do liberalismo radical (e nem todas), quanto a outros domínios tentou plasmar positivamente, em alguns artigos, o seu programa político. Um dos pontos desse programa era a defesa de república laica e democrática. O laicismo, produto ainda de uma visão individualista e racionalista, desdobrava-se em vários postulados republicanos: separação do Estado e da Igreja, igualdade de cultos, liberdade de culto, laicização do ensino, manutenção da legislação referente à extinção das ordens religiosas (cfr. art. 3º, nºs 4 a 12). O programa republicano era um programa racional e progressista: no fundo, tratava-se de consagrar constitucionalmente uma espécie de “pluralismo denominacional”, ou seja, a presença na comunidade, com iguais direitos formais de um número indefinido de colectividades religiosas, não estando nenhuma delas tituladas para desfrutar de um apoio estadual  positivo.”  (obra citada – pg. 247/8, grifei)


            Portanto, Estado laico não é Estado ateu. Não é Estado que proíba sejam abordados temas religiosos no cotidiano das pessoas que nele vivem.

            O Estado laico, justo porque democrático e plural, é o que garante a convivência pacífica e respeitosa dos que professam os mais variados credos, inclusive os que credo não tem.

            O Estado laico, insisto, respeita as convicções religiosas e sua livre expressão.

            O mesmo emérito Professor José Gomes Canotilho, já agora analisando  o tema à luz dos preceitos da Constituição portuguesa de 1976, demonstra como o texto moderno enfatiza a ampla liberdade de manifestação religiosa. De se ler:


2.2. A deslocação constitucional da “República laica

1.      A “laicidade da República”, a “República laica”, é também uma das noções ligadas à tradição republicana. Para além dos “momentos emocionais” que o laicismo republicano transporta, pode dizer-se que ele assenta principalmente em três princípios: secularização do poder político, neutralidade do Estado perante as Igrejas, liberdade de consciência, religião e culto. Todavia, a Constituição de 1976, embora herdando alguns dos princípios republicanos de 1910 (cfr. supra, Parte II, Cap. 3, E, I), não adjectivou a República Portuguesa como “República laica” e deslocou os problemas fundamentais do “laicismo” para o âmbito dos direitos fundamentais. Para além de evitar a reposição da “questão do clericalismo”, a Constituição considerou que, verdadeiramente, o que estava em causa eram problemas relativos a direitos, liberdades e garantias: liberdade de consciência, de religião e de culto, proibição de discriminação por motivos de convicções ou práticas religiosas, liberdade de organização e existência das igrejas e comunidades religiosas, liberdade de ensino da religião e o princípio da igualdade perante o Estado de todas as religiões (cfr. art. 41º).” (obra citada – pg. 410/411, grifei)
            Nossa Constituição partilha dessa mesma diretriz, visto que, expressamente, no inciso VI, do artigo 5º, afirma que
      
      “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias

            O inciso VII também assegura “a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”, e o inciso VIII não permite, seja privada, qualquer pessoa, de direitos “por motivo de crença religiosa”.

            Todo esse quadro normativo – é óbvio – não enclausura religiosos, e não religiosos, no espaço único de sua privacidade.

            Religiosos, e não religiosos, com as respectivas crenças, ou sem qualquer crença, têm o amplo direito de expor essas suas variadas concepções de viver na cotidiana formação da democrática sociedade. Democrática porque acolhe, incentiva e resguarda a pluralidade dos posicionamentos, e democrática, também, porque compreende ser infindável a interação humana, enquanto vida houver.

           Eis preciosos ensinamentos do padre Mario de França Miranda, como expostos no seu livro: “Igreja e Sociedade”:
“Hoje já se reconhece que as religiões têm algo a oferecer à sociedade civil. São elas que denunciam a marginalização a que são condenados os mais pobres, bem como as injustiças de políticas econômicas. São elas que oferecem uma esperança que sustenta e mobiliza os mais fracos. São elas que, livres de um dogmatismo doutrinário e impositivo, oferecem motivações e intuições substantivas ( e não apenas funcionais ) para as questões sujeitas ao debate público. São elas que, numa sociedade neoliberal e prisioneira de um racionalidade funcional em busca de resultados. Desmascaram a frieza burocrática e tecnocrática apontando os efeitos devastadores de certas decisões. São elas que, para além das macrossoluções milagrosas, apontam para a responsabilidade de cada um e para a imprescindível rejeição de um individualismo cômodo,sem as quais a ética na vida pública ou o problema ecológico não serão solucionados. Aqui a sabedoria religiosa talvez possa ser mais eficaz do que muitos discursos dos tecnocratas.
( pg. 139-40, grifos do autor e meu ).

          E, em síntese, correta, prossegue Mario de França Miranda:
“Porque a sociedade civil pode se tornar presa de ideologias totalitárias, prisioneira da lógica de resultados, ou do sistema econômico dominante, ela necessita de uma instância que a transcenda e a questione, que a desestabilize beneficamente e que a faça progredir.”
( pg. 141, grifos do autor e meu ).

          Assuntos de tamanha relevância pedem tratamento cuidadoso e responsável, pena comprometer-se a importante missão não só de informar, mas de formar a opinião pública.  

  



4 comentários:

  1. Obrigado pela aula, meu grande mestre e amigo. Parabéns

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  2. Cláudio,é muito bom poder conhecer teus sábios argumentos,sobretudo em assuntos tão atuais e necessários.Grata,Lourdes

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  3. É isso aí Bulldog Fontenelles, mas vamos ampliar essa Comissão da Verdade também para a torcida do Vasco parar de matar torcedor do Curingão, que tal?

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  4. Prezado Prof. Fonteles,
    Muito boas lembranças no seu texto "Estado laico", mas, por favor não se deixe enganar. É fato, sim: um Estado laico não é um Estado ateu. No entanto, se me permite, não é o "stablishment midiático" que vive deturpando o que seja uma República laica. São os ateus lá incrustados. "Stablishment midiático" é muito amorfo, é melhor dar logo nomes aos bois ... São os ateus na midia - a grande maioria encharcada com ideologias onde a religião é sua eterna inimiga - que fazem a defesa do que chamam de "Estado laico". Por favor, Professor, rogo não se deixe enganar ... (ainda mais hoje em dia!). Forte abraço,

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