segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

                                                   FRATERNIDADE



         Por ocasião da Quaresma, e até por conferir-lhe o significado de imprescindível momento de pausa para reflexão e avaliação de nosso viver, para que ele não se brutalize na indiferença repetitiva do cotidiano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB -, anualmente, promove a Campanha da Fraternidade, apresentando tema e lema motivadores de posicionamento nosso concreto.

         Para esse ano de 2012, o tema que se abre a partir de 22 de fevereiro é: “A fraternidade e a saúde pública”, e o lema: “Que a saúde se difunda sobre a terra”.

         De minha parte, saúdo a escolha porque, nos dias de hoje, a insensibilidade e a falta de desvelo por quem, profissionalmente, optou por cuidar dos doentes é manifesta e corriqueira.

         Todavia, esse comportamento não se reduz a tantas e tantos profissionais da saúde, mas atinge, indiscriminadamente, a todos nós. Atinge nossa época a ponto de se dizer que não vivemos uma “época de mudanças”, mas uma “mudança de época”.

         Considero que, efetivamente, inauguramos a “mudança de época”.

         O iluminismo racionalista – “penso, logo existo”, na célebre máxima de René Descartes –, centrando na razão humana o princípio e o fim das aspirações e realizações da mulher e do homem, sucumbiu.

         Em excelente artigo, intitulado “A idéia de fraternidade em duas Revoluções: Paris 1789 e Haiti 1791”, e publicado em coletânea de artigos a compor o livro “O Princípio Esquecido”, Antônio Maria Baggio, organizador dessa publicação, com muita propriedade ensina:

                     A fraternidade é capaz de dar fundamento à idéia de uma comunidade universal, de uma unidade de diferentes, na qual os povos vivam em paz entre si, sem o jugo de um tirano, mas no respeito das próprias identidades. E justamente por isso a fraternidade é perigosa. Talvez seja o motivo pelo qual, na mentalidade acadêmica e política, não se aceita considerá-la uma categoria política. Mas a fraternidade – entendida justamente em sua dimensão política – aparece até na correspondência diplomática da Idade do Bronze tardia.
                    Devemos ter a coragem de recuperá-la, se quisermos superar a insuficiência antropológica do Iluminismo, se quisermos encontrar um fundamento melhor para a idéia do homem, capaz de sustentar o golpe que a Revolução negra desferiu contra o falso universalismo que a cultura europeu-ocidental interpretava – e, talvez, ainda hoje interprete – princípios declarados universais.
                    Claro, a categoria da fraternidade tem um fundamento religioso explícito; e é em virtude disso – das contribuições que as religiões deram para o conhecimento do homem – que podemos falar de liberdade e igualdade. Descobrimos que somos livres e iguais porque somos irmãos. O pensamento moderno desenvolveu a liberdade e a igualdade como categorias políticas, mas não fez o mesmo com a fraternidade...No entanto, a fraternidade é o princípio regulador dos outros dois princípios: se vivida fraternalmente, a liberdade não se torna arbítrio do mais forte, e a igualdade não degenera em igualitarismo opressor... Ninguém pode se conhecer totalmente por si mesmo. São os outros, sempre, que completam a visão que nós – como indivíduos e como povos – temos de nós mesmos. São os outros que nos dizem, de diversas maneiras, quem realmente somos.”
                         ( O Principio Esquecido – pg. 53/4 – grifei ).

                          Ou, para trilharmos o seguro pensamento do filósofo Emmanuel Mounier:

                        “A pessoa é uma interioridade que tem necessidade de uma exterioridade. A palavra existir indica pelo seu prefixo que ser é expandir-se, exprimir-se.”
                                            ( O Personalismo – pg. 66 – grifei ).

                           A razão, enclausurada em si mesma e afeiçoada ao delírio da técnica, como expressão de sua infalibilidade, gera a solidão egocêntrica: os outros, deles me utilizo a pretexto de favorecê-los.

                           Eis porque sem cheque caução nego atendimento médico a quem dele necessita; eis porque se este hospital não está conveniado com meu plano de saúde, não sou atendido; eis porque quem me chega ao pronto socorro, considero-o verdadeiro estorvo, ou porque atrapalha o meu sono; meu programa televisivo; minha refeição e por aí se vai nessa trilha glacial da indiferença humana.

                              Mario Quintana, escritor gaúcho, oferece-nos esse pequeno texto, tão lúcido, que não posso guardá-lo, na leitura que dele faço, só para mim. Nada pode ser só para mim. Eis o texto:

                  “DEFICIÊNCIAS

                  Deficiente é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono de seu destino.

                  Louco é quem não procura ser feliz com o que possui.

                  Cego é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores.

                  Surdo é aquele que não tem tempo de um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês.

                  Mudo é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.

                  Paralítico é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.

                  Diabético é quem não consegue ser doce.

                  Anão é quem não sabe deixar o amor crescer.

                  E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois miseráveis são todos os que não conseguem falar com Deus.”
( in – Por Trás da Palavra  - janeiro-fevereiro de 2012 – pg. 2 ).

         O Compêndio da Doutrina Social da Igreja põe-se no mesmo posicionar-se de Mario Quintana quando ensina:

“A semelhança com Deus põe em luz o fato de que a essência e a existência do homem são constitucionalmente relacionadas com Deus do modo mais profundo. É uma relação que existe por si mesma, não começa, por assim dizer, num segundo momento e não se acrescenta a partir de fora. Toda a vida do homem é uma pergunta e uma busca de Deus. Esta relação com Deus pode ser tanto ignorada como esquecida ou removida, mas nunca pode ser eliminada. Dentre todas as criaturas, com efeito, somente o homem é capaz de Deus ( “homo est Dei capax ). O ser humano é um ser pessoal criado por Deus para a relação com Ele, que somente na relação pode viver e exprimir-se, e que tende naturalmente a Ele.”
(Compêndio da Doutrina Social da Igreja nº 109 – pg.73).